Neymar e a política racial do Brasil

E, no Brasil, Neymar não é negro (ou preto).

Neymar vs Croatia on June 12, 2014. Screengrab by Rafael Almeida Teixeira, via Flickr.

No momento em que você lê este texto, é bem provável que toda pessoa do planeta já saiba quem é Neymar da Silva Santos Júnior. A imagem acima é de Neymar, 10 dias atrás.

Neymar, há um ano:

Neymar in June 2013. Photo: Laura Alberch.

O pequeno Neymar com seus pais e irmã:

Você poderia chegar a inúmeras conclusões sobre a notável transformação de Neymar. Por exemplo, você poderia concluir que raça não existe no Brasil, frase favorita de uma “tribo” específica de brasileiros—todos liberais impecáveis, que coincidentemente são da classe alta, brancos e no topo da escombreira.

Ou poderia concluir que todo mundo no Brasil é de fato, mestiço—que é, a segunda frase favorita do mesmo grupo.

Ou, poderia se perguntar o que aconteceu com este menino.

****

É fácil demais condenar Neymar por fingir ser branco: a julgar pelas imagens, ele é parcialmente branco. É tolice acusá-lo de negar sua ascendência mestiça pois a mais simples das buscas regurgita centenas de imagens de sua infância, das quais ele não parece se envergonhar. Há isso: quando questionado se ele alguma vez havia sido vítima de racismo, ele disse, “Nunca. Nem dentro nem fora de campo. Porque eu não sou preto, certo? ”

A palavra que ele usou, ‘preto’, é fato significativo, já que, no Brasil, quando usado como cor atribuída a pessoas—ao invés de coisas, como arroz ou feijão—equivale à palavra ‘n’ em inglês (negro ou nigger); ‘negro’ e ‘negra’ são termos mais aceitáveis para descrever alguém que é de fato ‘negro’ (em inglês, black). E, ‘moreno’ ou ‘morena’ são os padrões para descrever alguém de pele mais escura, assim como, ocasionalmente, eufemismos para o ser negro). Tecnicamente falando, entretanto, a lógica de Neymar é irrepreensível—e até meio que interessantemente honesta: o Neymar que fez a declaração era um rapaz de dezoito anos, sem experiência forasteira e ainda não tinha morado fora do Brasil. E, no Brasil, Neymar não é negro (ou preto).

****

Em 1976, o IBGE realizou uma pesquisa que marcou uma mudança crucial em relação a exercícios de pesquisa amostral e censitária anteriores. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) não dava aos brasileiros um conjunto de opções predeterminadas para escolher uma raça; ao invés disso, os pesquisadores saíram e solicitaram às pessoas que descrevessem a cor que elas acreditavam que fossem.

Este foi o retorno.

1. Acastanhada
2. Agalegada
3. Alva
4. Alva escura
5. Alvarenta
6. Alvarinta
7. Alva rosada
8. Alvinha
9. Amarela
10. Amarelada
11. Amarela-queimada
12. Amarelosa
13. Amorenada
14. Avermelhada
15. Azul
16. Azul-marinho
17. Baiano
18. Bem branca
19. Bem clara
20. Bem morena
21. Branca
22. Branca-avermelhada
23. Branca-melada
24. Branca-morena
25. Branca-pálida
26. Branca-queimada
27. Branca-sardenta
28. Branca-suja
29. Branquiça
30. Branquinha
31. Bronze
32. Bronzeada
33. Bugrezinha-escura
34. Burro-quando-foge
35. Cabocla
36. Cabo-verde
37. Café
38. Café-com-leite
39. Canela
40. Canelada
41. Cardão
42. Castanha
43. Castanha-clara
44. Castanha-escura
45. Chocolate
46. Clara
47. Clarinha
48. Cobre
49. Corada
50. Cor-de-café
51. Cor-de-canela
52. Cor-de-cuia
53. Cor-de-leite
54. Cor-de-ouro
55. Cor-de-rosa
56. Cor-firme
57. Crioula
58. Encerada
59. Enxofrada
60. Esbranquecimento
61. Escura
62. Escurinha
63. Fogoió
64. Galega
65. Galegada
66. Jambo
67. Laranja
68. Lilás
69. Loira
70. Loira-clara
71. Loura
72. Lourinha
73. Malaia
74. Marinheira
75. Marrom
76. Meio-amarela
77. Meio-branca
78. Meio-morena
79. Meio-preta
80. Melada
81. Mestiça
82. Miscigenação
83. Mista
84. Morena
85. Morena-bem-chegada
86. Morena-bronzeada
87. Morena-canelada
88. Morena-castanha
89. Morena-clara
90. Morena-cor-de-canela
91. Morena-jambo
92. Morenada
93. Morena-escura
94. Morena-fechada
95. Morenão
96. Morena-parda
97. Morena-roxa
98. Morena-ruiva
99. Morena-trigueira
100. Moreninha
101. Mulata
102. Mulatinha
103. Negra
104. Negrota
105. Pálida
106. Paraíba
107. Parda
108. Parda-clara
109. Parda-morena
110. Parda-preta
111. Polaca
112. Pouco-clara
113. Pouco-morena
114. Pretinha
115. Puxa-para-branco
116. Quase-negra
117. Queimada
118. Queimada-de-praia
119. Queimada-de-sol
120. Regular
121. Retinta
122. Rosa
123. Rosada
124. Rosa-queimada
125. Roxa
126. Ruiva
127. Russo
128. Sapecada
129. Sarará
130. Saraúba
131. Tostada
132. Trigo
133. Trigueira
134. Turva
135. Verde
136. Vermelha

Lilia Moritz Schwarcz, antropóloga da Universidade de São Paulo, USP, tem uma variedade surpreendente de insights à volta desta pesquisa histórica. O artigo Not black, not white: just the opposite. Culture, race and national identity in Brazil [Nem preto, nem branco: exatamente o contrário. Cultura, raça e identidade nacional no Brasil], do qual a tabela acima foi retirada, é uma preciosidade. (A autora também analisa os primórdios da questão, em livro de sua autoria: “Espetáculo das Raças: Cientistas, Instituições e Questão Racial no Brasil 1870-1930“).

O trabalho de Schwarcz é repleto de análise original e refletida, e é caracterizada por um destemor incomum (incomum, para um assunto tão complicado). Ler Schwarcz é uma revelação; revela-se que existe um lugar real a se esconder embaixo da avalanche de clichês. Se você alguma vez já se perguntou como o racismo esmagador pode florescer em um país onde aparentemente a raça em si mesma foi esmagada, considere que tudo que define o Brasil—do lema “somos todos misturados”, a feijoada, a capoeira e o candomblé, até samba e o futebol—é o resultado de uma manobra política insidiosa, revisionista e perspicaz dos anos 1930, cortesia das habilidades combinadas do intelectual popular Gilberto Freyre e do populista Getúlio Vargas. O corpo maltratado da cultura da escravidão foi sequestrado pela cultura nacional para renovar a cultura branca.

Entre os muitos resultados de arregalar os olhos reportados na PNAD, o que mais me atraí é a do ‘burro quando foge’. Você pode encontrá-la na tabela no número 34. O tradutor do Google inexplicavelmente traduz a frase como ‘sela’, que é incrível, e demonstra que a Lusofonia ainda mantém alguns segredos além do alcance do monstro gigante. ‘Burro quando foge’ é traduzido para o inglês por Schwarcz, limitada ao espaço de apenas umacoluna, como the disappearing donkey e explicado como um termo cômico que denota uma cor inclassificável.

E mais. Ametáfora é singular ao Brasil: uma cor que possa ser inclassificável, indefinida, elusiva, ou feia—e, só para deixar as coisas mais claras, também castanho-amarelado, bege, ou uma sombra de marrom caprichosa. A ideia transmitida na frase é tão quanto interessante. Usada entre amigos, passa como piada. Caso contrário, quase sempre denota algo desagradável. É usualmente usada como insulto, embora, curiosamente, dadas as cores e os sentimentos—não é especificamente um insulto racial.

De todas as cento e trinta e seis cores de raça no Brasil, esta é minha predileta. É irreverente, factual e ficcional de uma só vez, e, como tal, serve-me perfeitamente. Raça não é um termo que tem muita expressão na Índia, país onde moro. É, entretanto, característica central de Johanesburgo e São Paulo, duas cidades nas quais trabalho ocasionalmente, e tanto quanto estou ciente de quão privilegiado sou de não estar completamente sujeito a ela, sinto-me curiosamente desprovido de raça em ambos os lugares. Certamente, cresci com cor: por ser a criança moreninha em uma família uniformemente de cútis clara, regularmente contendia com parentes bem-intencionados que beliscavam minhas bochechas e me ralhavam por “ter perdido minha cor”—como se o tom de pele fosse algo que eu tivesse trazido sobre mim mesmo por um ataque de distração. Não obstante, se devo escolher uma raça, indiano poderia funcionar para algumas pessoas, mas trata-se da denominação de meu passaporte e de minha residência, e isso basta. Castanho é genérico demais, e negro, seria um pouco demais inacreditável, considerando todas as coisas. Dado o tempo que gastei na minha infância lendo Gerald Durrell e sonhando com burros, adotar a cor deles parece correto de diversos pontos de vista.

***

E onde tudo isso deixa nosso garoto prodígio? Podemos começar com o Estado Novo, o regime autoritário de Vargas entre 1937 e 1945. Apenas alguns anos antes, Freyre havia publicado o maior sucesso de sua carreira, Casa Grande e Senzala, um grande sucesso. A teoria central de Freyre era algo que ele chamou de ‘Lusotropicalismo’. Narra a história reconfortante do passado (ao retratar os portugueses como escravocratas imperiais mais gentis e amáveis), oferece uma solução conveniente para o presente (ao tornar a mistura de raças em virtude) e apresenta uma conclusão atraente, nomeadamente, a ideia de que o Brasil era uma democracia racial.

Assim que publicado, o trabalho de Freyre imediatamente atraiu a ira da nação portuguesa ao sugerir que seus cidadãos eram propensos à miscigenação. No Brasil, no entanto, a tese se tornou o plano mestre de Vargas para o país que ele havia se apossado—e sua estratégia para sobrevivência política. Três quartos de século mais tarde, a concepção maior de Freyre permanece persistente de Brasil, uma ideia cujo apelo cresce a passos largos e faz eco pelo globo, e certamente, com frequência escapa das garras de seus criadores gerando efeitos deslumbrantes. Mesmo assim, considere a ironia: o sentimento que o país tem de si mesmo como democracia racial foi contrabandeado alma adentro por um autocrata.

O termo Estado Novo se refere a um período de ditadura, em si profético, já que as palavras também descrevem uma tarefa peculiar que compete a pelo menos metade da população brasileira. Essa tarefa, claro, é o afazer do branqueamento—transformar, de forma bastante literal, em um novo estado físico. (A despeito de sua defesa da miscigenação, Schwarcz chama à atenção em O Espetáculo das Raças, que Freyre, tal como seus críticos, era veementemente a favor de manter a estrutura do Brasil intacta: como hierarquia, a brancura no topo). Nesse sentido, Neymar é apenas a mais recente, em uma longa fila de celebridades e brasileiros de menor monta, que entende. Entende a letra pequena no contrato; entende que a identidade nacional se assenta sobre a harmonia racial, que, por sua vez, se assenta sobre um acesso potencial à oportunidade. Não a oportunidade de ser igual, tenha isso em mente, mas a oportunidade de ser branco. Podemos nos escandalizar com ele quanto quisermos, mas ao alisar o cabelo, esticando-o, e tingindo-o de loiro, Neymar estava cumprindo seu destino patriótico, exatamente tanto quanto confundindo os croatas e levando sua equipe à vitória no jogo de abertura da Copa.

***

Arrisco-me a afirmar que a cor de burro quando foge se encaixa a Neymar com exatidão. A final de contas, ele é ambos: tanto incontestavelmente quanto enganosamente, marrom. Sim, existe a questão da sua “ambição loira”. “O burro fugiu? ” Eu gostaria de pensar que não.  Por um lado, o rapaz tem apenas vinte e dois anos e uma vida inteira para mudar de ideia—e de cabelo. Por outro lado, tenho uma Copa do Mundo inteira para assistir. Tenha dó. Passo horas e horas, todas as semanas, estudando português brasileiro, tenho devoção ao país, e sou de Bangalore, cidade onde Pelé é deus. E não digo isso metaforicamente. Em um bairro de nome Gowthampura, pertinho de onde moro, os moradores erigiram um encantador santuário a quatro ícones locais: o Buda, Doutor Ambedkar, Madre Teresa e o ex-atacante do Santos.

unnamed-6

Como você pode ver, minhas mãos estão atadas. Tenho meu próprio destino patriótico a cumprir, e ele envolve torcer para o Brasil, que quer dizer que preciso gostar muito do Neymar.

Eu consigo.

De qualquer jeito, burros são animais famosos pela teimosia. Eles são bons de esperar.

* Nota do Tradutor: embora alguns leitores do artigo em inglês argumentem em seus comentários que o termo “preto” em português não equivale ao inglês “nigger”, a maioria dos tradutores e especialistas fazem uso do termo na literatura e em legendas de filmes. No Brasil, especialmente nas capitais e cidades maiores, chamar um afrodescendente de ‘preto’ é considerado ofensivo, e pode ser enquadrado como injúria qualificada, crime previsto em lei, artigo 140, § 3º do Código Penal que trata de “crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.

[Translator’s Note: although a number of readers in the comments section of the English article argue that the term “preto” in Portuguese is not equivalent to the English “nigger,” most translators and specialists make use of the terms as equivalents in literature and film subtitles. In Brazil, especially in state capitals and larger cities, calling an Afro Brazilian “preto” is considered offensive, and it is prosecutable under Brazilian law as a hate crime—Article 140, paragraph 3rd of the Penal Code, known as “injúria qualificada.”]

Further Reading

And do not hinder them

We hardly think of children as agents of change. At the height of 1980s apartheid repression in South Africa, a group of activists did and gave them the tool of print.

The new antisemitism?

Stripped of its veneer of nuance, Noah Feldman’s essay in ‘Time’ is another attempt to silence opponents of the Israeli state by smearing them as anti-Jewish racists.