A comunicação social ‘bem comportada’ de Angola

A precariedade da liberdade de imprensa em Angola sob o mandato do presidente João Lourenço.

Image credit Paul Kagame via Flickr CC BY-NC-ND 2.0 Deed.

Exactamente na mesma semana em que o relatório anual da Human Rights Watch afirmava que a liberdade de imprensa em Angola está “sob ameaça”, o presidente de Angola, João Lourenço, realizou uma conferência de imprensa onde partilhou o quão satisfeito estava com o desempenho da imprensa local, pois, segundo o mesmo, “está a crescer e a cumprir com o papel que lhe cabe”. Embora alguns sugiram que se trataram de dois acontecimentos distintos, esta dicotomia discursiva constitui uma das maiores ambivalências que tanto os jornalistas como a imprensa atravessam hoje em Angola.

Hoje, mais do que nunca, e como é característico em todo o mundo na era da pós-verdade, a imprensa angolana vive um período turbulento, que põe em causa muitos dos seus valores fundamentais. Além do combate à desinformação que se propaga de forma surpreendentemente rápida nas redes sociais, há outro desafio que a comunicação social angolana tem de enfrentar: uma liderança política delirante, cujo discurso alimenta a ideia ilusória de que existe actualmente em Angola um ambiente apropriado que permite à imprensa cumprir com os desígnios livremente.

Esta visão ilusória, fundamental para a manutenção da narrativa oficial do regime angolano, pode ser observada nas recentes declarações que o presidente João Lourenço fez no Huambo, no planalto central de Angola.

“O jornalismo angolano está a crescer e a cumprir com o papel que lhe cabe”, afirmou, acrescentando que:

No tempo do partido único, o jornalismo praticado naquela altura era bem diferente daquele que é praticado hoje. Hoje existe liberdade de imprensa, não é só o Estado quem é detentor de empresas de comunicação social; o setor privado também está neste nicho de mercado.

Como esperado, estas observações foram recebidas com muitas críticas e ceticismo por parte das organizações jornalísticas e do público em geral.

Como disse Teixeira Cândido, Secretário-Geral do Sindicato dos Jornalistas Angolanos (SJA), à agência noticiosa portuguesa Lusa, em reacção aos comentários do presidente:

Respeitamos a opinião do Presidente da República, porém a nossa opinião, e olhando para a posição de Angola hoje no ranking dos Repórteres Sem Fronteiras, conseguimos concluir que não há crescimento, há uma estagnação e há um retrocesso.

Em Angola, a comunicação social sempre desempenhou um papel fundamental na governação. Por esta razão, o partido no poder de Angola, o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), e os seus sucessivos governos, têm prestado especial atenção a este sector. Portanto, não é surpresa que os meios de comunicação estatais estejam em primeiro lugar entre as 10 principais empresas que receberam mais subsídios financeiros do Estado em 2020.

Os principais órgãos de comunicação social em Angola, incluindo a Televisão Pública de Angola (TPA), a Rádio Nacional de Angola (RNA), o Jornal de Angola (JA) e a Agência de Notícias de Angola (ANGOP), são estatais. O seu alto nível de circulação em Angola não tem nada a ver com a qualidade do seu jornalismo, mas sim com o facto de serem as únicas instituições de comunicação social com os recursos materiais e financeiros para chegarem a todo o país.

O interesse do poder de Angola em ter uma grande hegemonia no sector da imprensa pode também ser observado através de iniciativas, aparentemente privadas de início, mas que depois se veio a descobrir que pertenciam ou a empresas ligadas ao MPLA ou a pessoas pertencentes a elite política e económica de Angola. Exemplos destes são a Luanda Antena Comercial (LAC), Rádio Morena, Rádio Cabinda e a Rádio 2000, algumas geridas pela Sopol, parte do grupo empresarial Gefi, integrado por altos dirigentes do MPLA e considerada um “braço económico” do partido.

Contudo, Angola não é uma excepção. Muitos regimes autocráticos comportam-se da mesma forma em todo o mundo. Os pesquisadores Christopher Walker e Robert Orttung observam que:

Os meios de comunicação controlados pelo Estado não existem apenas para elogiar os poderes instituídos. Uma função complementar vital é destruir e desacreditar alternativas ao status quo autoritário antes que estas possam ganhar força junto dos cidadãos em geral. Desta forma, os meios de comunicação estatais são uma ferramenta para marginalizar qualquer potencial oposição política ou movimento cívico. Sem um acesso significativo às ondas de rádio, os grupos de oposição têm dificuldade em alcançar potenciais apoiantes ou em se tornarem vozes significativas na discussão pública.

O governo angolano é o maior detentor de empresas de comunicação social no país, saturando o país com propaganda pró-regime em quase todos os meios e canais. Este estado de coisas deixa a pouca imprensa independente existente em Angola com um trabalho muito difícil. Apesar de defender que o seu mandato é marcado por uma maior liberdade de imprensa, como forma de criticar os quase 40 anos de governo do seu antecessor, foi durante o primeiro mandato de Lourenço que grandes atrocidades foram cometidas contra os poucos meios de comunicação social privados, particularmente mais críticos do poder político ou com uma linha editorial mais imparcial.

Estas atrocidades incluem colocar a TV Zimbo, outrora de gestão privada, sob gestão estatal, com o argumento de que foi criada com recursos públicos provenientes da corrupção. Lançada em 2008, a TV Zimbo foi a primeira estação de televisão privada do país. Embora a Mídia Nova, o grupo proprietário da TV Zimbo, pertencesse a dois antigos altos funcionários do governo anterior, a estação de televisão era vista por muitos angolanos como uma fonte alternativa de informação face à propaganda pró-regime à qual toda a mídia estatal extensivamente se dedica. No mesmo período, outros meios de comunicação social anteriormente privados, como a Palanca TV, a Zap, o Jornal O País e a Rádio Mais, foram igualmente nacionalizados com base na acusação de corrupção.

No relatório deste ano, a organização não-governamental Human Rights Watch afirma que “a imprensa foi alvo de ataques em diversas ocasiões ao longo de 2023, à medida que as autoridades continuavam a utilizar leis draconianas sobre a comunicação social para reprimir e assediar jornalistas”. Com um governo tão empenhado em controlar os meios de comunicação social, instalou-se em Angola uma atmosfera tóxica e sufocante para o jornalismo.

Tomemos, por exemplo, o comentário do Presidente brasileiro Luís Inácio Lula da Silva, durante uma visita de Estado em 2023, de que ficou “chocado” com “o quão bem comportados” são os jornalistas angolanos. O choque de Lula esteve relacionado ao facto da maioria dos jornalistas angolanos não terem feito perguntas desafiantes e comprometedoras, como acontece no seu país e noutros lugares do mundo democrático.

Com tanta interferência do poder político, criou-se hoje em Angola um cenário ideal para casos de censura e autocensura no jornalismo. Temendo as consequências de não seguirem as regras de censura, muitos jornalistas são forçados a produzir jornalismo que sabem não cumprir com os princípios basilares da profissão, tais como a verdade, precisão, independência, justiça, imparcialidade, humanidade e responsabilidade. Isto é visto com muita frequência, por exemplo, na forma como os jornalistas dos meios de comunicação estatais cobrem questões relacionadas com opositores políticos e detentores de opiniões críticas ao governo em Angola.

A falta de imparcialidade neste tipo de cobertura mediática tem suscitado com muita frequência um debate público sobre o verdadeiro papel dos meios de comunicação social estatais e sobre se os contribuintes angolanos deveriam continuar a financiar  meios de comunicação social que funcionam somente como ferramentas de propaganda do Estado, fazendo muito pouco no âmbito do serviço público.

À medida em que o escrutínio e as críticas crescem, a falta de confiança nos meios de comunicação angolanos está a levar muitos a procurar formas alternativas de acesso à informação, seja no Facebook ou no TikTok. Com isto, abre-se em Angola um terreno fértil para novas formas de jornalismo e divulgação de informação.

Embora nem sempre acompanhadas do rigor jornalístico expectável, muitas iniciativas de jornalismo online surgiram recentemente em Angola, tornando-se extremamente populares entre os angolanos online, especialmente os mais jovens.

A utilização das redes sociais (como vimos na forma como os memes têm sido utilizados) e de outras expressões culturais têm sido construtivas neste sentido. No entanto, é sempre importante notar que os regimes autocráticos tendem a não poupar esforços para se manterem à frente da narrativa pública. Exemplo disso em Angola é a recente aprovação da polêmica Lei de Segurança Nacional, que propõe a interrupção dos serviços de telecomunicações quando “necessário”.

Exemplos como este indicam que, apesar dos avanços democráticos alcançados pela sociedade civil, as tendências retrógradas nunca devem ser completamente ignoradas nos Estados autocráticos.

About the Author

Israel Campos is a journalist covering Angolan stories for international news outlets such as the BBC and Voice of America (VOA). He's currently a strategic communications master student at Universidade Católica Portuguesa.

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