Não consuma o que você vende
Um novo filme de Ery Claver investiga a tensa relação entre China e Angola, revelando suas diferenças—e surpreendentes semelhanças.
- Interview by
- Marissa Moorman
Em Maio de 2023 em Luanda, Angola eu conversei com Ery Claver, realizador de Nossa Senhora da Loja do Chinês/Our Lady of the Chinese Shop (2022). O filme estreou no festival de Locarno em agosto de 2022 e foi selecionado e visto no 2023 New York African Film Fest.
Esta entrevista tem sido editada, mas a nossa conversa tocou em vários assuntos desde a sua formação informal como operador de câmera de televisão na Televisão Publica de Angola (TPA), até sua práctica cinematográfica, ao estado actual do cinema em Angola, e os desafios que uma produtora pequena e independente enfrenta em distribuir os seus filmes no território nacional, e internacionalmente, num país onde existe pouco apoio pelas artes e cultura. Claver faz parte da produtora colectiva Geração 80, cujo filme Ar Condicionado/Air Conditioner (2020, realização Fradique) ganhou o prémio de Associação de Estudos Africanos dos E.U.A. em 2020.
Conta-me como surgiu o teu filme, Nossa Senhora da Loja do Chinês?
É um bocado complicado. Filmei todos os projectos da G80 e também filmei alguns projectos do cinema. O trabalho na G80 era muito vasto – passava pelo documentário, coisas mais experimentais, até casamentos…tinha um pouco de tudo. Permitia-me sempre fazer narrativas com nuances e me tirou o medo de não ser tão formal.
Porque quando entrei na G80 encontrei pessoas muito académicas, por exemplo mesmo Fradique, que de alguma forma intimidavam-me, porque eles tinham uma forma de trabalhar muito mais organizada, e eu dizia agora mesmo que eu nunca vou fazer filmes porque o processo parece muito longo. Mas numa certa altura, nós conciliamos essas nossas valências. Com Fradique, ele deu conta que eu era muito práctico. Com a questão de filmar na rua, eu consegui encenações muito interessantes – só com uma câmera eu convencia as pessoas, criava situações muito bem-apresentadas que eles ficavam admiradas.
Nós nos auto-chegamos à conclusão que devemos escrever um roteiro de filme que acabou no Ar Condicionado (2020). Nós começamos a escrever esse roteiro. Nós discutimos muito por causa dessas diferenças que nós temos…de eu ser urbano, mais boémio. E o Fradique é mais reservado, mais de organizar os projectos em cima da mesa, eu sou mais em cima de uma mesa no bar! Sou mais outsider. E nós tivemos sempre muitas dúvidas em qual seria a estética do filme e nesse tempo em que estávamos a escrever, eu fiz duas ou três curtas neste projeto que era Fucking Globo! Um projeto coletivo de artistas na baixa de Luanda no Hotel Globo. Houve um filme, que chama-se Lucia no Ceu com Semáforos. Acho que é o filme mais bem conseguido porque consegui algo que queria fazer há muito tempo, desde que eu comecei a pensar no cinema, que eram curtas-metragens a partir de fotogramas, de imagens.
Porque sempre tive essa coisa com cinema que quando lia muito sobre cinema e ia a biblioteca e ler livros sobre cinema, e eu cheguei a ver muitos filmes lendo sobre os filmes. Mas não tinha acesso aos filmes. Às vezes estava a ler sobre filmes como Batman. Eu li o Seventh Seal…vi Sétimo Selo a ler. Eu tinha duas imagens – que era o jogo de xadrez com a morte e mais uma – e eu tive que imaginar o filme a partir dessas únicas imagens. Depois chegou google, Youtube, na altura nem tinham DVDs, e ficava tudo mais fácil. Mas a partir dai, eu começava a tirar fotos. Tive sempre esse intuito de foto e o texto. Contava uma estória com 4-5 fotos. Então chamava isso essas minhas curtas-metragens.
Fazia mais assim porque não tinha muita experiência narrativa e achava muito interessante o poder da imagem em tão poucos quadros. Consegui fazer com este filme de Lúcia que é um poema que fiz. Então isso me deu também muita vantagem na coisa de escrever. Descobri que era a única forma que eu conseguia fazer um roteiro sem parecer ‘boring,’ chato, porque sempre achei a ideia do roteiro ou do cinema, do guião, muito chata…sem emoção nenhuma, né? O exterior de casa, o dia, o interior, aquelas regras todas são muitas secas.
O Fradique também gostou muito do resultado do filme. Isso deu-nos mais ousadia também no roteiro do Ar Condicionado de andar mais rápido porque estávamos com muitas lacunas sobre a estética do filme. Então o que Glauber Rocha disse: basta a câmera na mão e uma ideia na cabeça, e a história auto-envolve-se no lugar em que tu escolhes para filmar. Trabalhas com aquilo que tens.
Ficamos duas, três semanas no prédio, a ensaiar. Os vizinhos do prédio respeitavam os ensaios. Sabiam que eram ensaios e eles queriam ficar a ver o que estava no dia de gravação. Mas nós, de facto, já estávamos a filmar! Era uma equipa pequena – 3 ou 4 pessoas – então foi tudo muito orgânico. As pessoas não chateiaram, as pessoas participaram. Tirando o actor que foi posto lá, tudo o resto ao redor são as próprias pessoas que assumiram personagens e assumiram diariamente…eu perguntava, “vizinha podes voltar a pôr aquela saia?” E ela, “na boa.”
Nos mostrou que era possível fazermos o nosso cinema que de facto nós sonhávamos. Mas com algumas regras. As regras não são tão duras assim. São as regras da cidade. As regras do próprio lugar que tem a sua dinâmica própria, mas quando conquistas, acho que flui muito bem. Nunca tive assim grandes apertos ou dificuldades a fazer nenhum filme cá em Luanda. Mesmo em termos de atraso, a produtora está louca de começar às oito, nove, mas eu sei que a hora de começar seria às dez. As pessoas têm um ritmo. E é muito mais fácil criar um equilíbrio de adaptação do que impor. É um diálogo muito delicado.
Com o Ar Condicionado, já estava a pensar na Nossa Senhora ou só depois de acabar AC?
Quando não estava a filmar, conseguia alimentar-me visualmente com poemas. Os poemas para mim são altamente visuais, são muito cinematográficos. Mas queria de facto essa coisa maior, Nossa Senhora, a partida de uma curta que eu fiz sobre o Pinóquio—uma versão angolana de Pinóquio—e um filme que queria, mais uma curta, sobre a tourada. Seria um evento político que queria fazer. Eu mostrei ao Jorge [Jorge Cohen, fundador de e produtor na G80] e ele disse, “não, longa. Escreve mais e vamos aproveitar que estamos com essa energia.” Fui buscar várias histórias que eu já tinha. Houve três personagens que já tinha, às quais dei mais camadas. A única coisa nova que apresentei no filme foi a loja do chinês e o envolvimento com o santo, a figura da estátua de plástico.
Porque a tourada?
Eu sempre conversei com Jorge que a tourada para mim era uma personificação de Luanda. Um lugar com grandeza, mas meio abandonado, meio inacabado que ficou por fazer. Porque ficou por acontecer. Tem toda aquela imponência. Está ali no centro, mas não serve para nada, estamos ainda à espera que … retome. Teve um grande concerto—teve Chico Buarque, teve Gilberto Gil—projecto Kalunga [1980 trouxe músicos brasileiros para Angola em intercâmbio cultural]. Então a tourada para nós foi uma homenagem a esse momento em que se tentou criar com artistas angolanos esta grandeza. E tentei usar algumas pessoas que viveram o espaço naquela altura.
Nós começamos a fazer o filme durante a pandemia. E obviamente havia aquelas suspensas, as pessoas não sabiam o que seria no futuro, mas acho que para mim e para o Jorge, foi o melhor que podia ter acontecido de alguma forma, sem querer isso que as pessoas que perderam alguém. Mas para nós aqui tudo parou e deu-nos tempo para dedicarmos só para este projecto. E mesmo para filmar, tirando os constrangimentos das máscaras, e esses outros detalhes de interdição, para nós foi muito calmo e foi muito mais ágil porque a cidade estava muito calma, as pessoas estavam em casa, não havia muito para onde fugir, as pessoas estavam muito bem comprometidas porque as pessoas tinham a necessidade de trabalhar, e toda a gente queria se livrar de estar em casa e tal. Foi muito mais fácil filmar do que o Ar Condicionado, se bem que foi um filme maior.
Tivemos que adaptar o guião algumas vezes, principalmente na tourada que teria para ter gente no estado mas ficamos limitados e tivemos que encontrar uma solução criativa. Tive que re-escrever o guião mas em termos simbólicos, até foi melhor. O que eu queria dizer, de uma forma indirecta, era justamente o que estava apresentado agora em imagens. É daquelas coisas que a pandemia deu-nos, deu-nos essa magia. Que é uma coisa que eu gosto muito. Esta imprevisibilidade do cinema a mim não me preocupa muito, ou nada. Faz te improvisar e estar sempre vivo. Tu estás sempre a desenvolver todos os sentidos. Tu estás sempre condicionado.
Qual foi o maior desafio de fazer Nossa Senhora?
O maior desafio foi lidar com a língua do narrador. Quando eu coloquei nesse desafio de usar essa análise entre a China-Angola, essas relações econômicas, eu queria que roçasse um pouco em relações folclóricas também para mascarar … para que não fosse uma história tão directa do nível econômico.
Quando fiz o guião era a figura do Domingas [uma das figuras principais], que era a narradora do filme, ela narrava, ele ia ao certo momento a tal loja da China. Não havia logo essa relação. Mas eu quando pensei, aqui tem uma história. É sobre, não digo imposição, mas uma situação em que nosso mecanismo de adoração e do milagre e da fé está suportado numa outra cultura que está posta no nosso país de forma tão abrangente mas do que nós não temos conhecimento nenhum. Então é a coisa mais estranha. Nós estamos a ir buscar. O que nós acreditamos, já é estrangeiro e ainda mais o outro, mais estrangeiro ainda. Então estamos com a identidade completamente deturpada e de facto nunca vamos ter um domínio palpável de nosso país porque nós estamos sempre subalternos aos outros.
Achei curioso que o chinês ditei esse cariz – ele não consome o que vende. Até o actor com quem trabalhei disse isso, “vosso problema é esse. Vocês dão ao povo o que o povo acredita, mas vocês também consomem.” Ele estava a falar do governo. Até quem oferece o produto também está deslumbrado com o produto. Não tem nem domínio da ludibriação, da imposição, que está a fazer ao povo.
Daí veio essa ideia de colocar a narração em off no filme para já, mas eu queria usar em alguns capítulos do filme, provérbios chineses. Mas quando fui procurar esses provérbios eu achei tão similar com os provérbios que eu estava a pesquisar angolanos aqui, na nossa simbólica e no mecanismo de palavras… com tão pouco criar-se um mundo, universo de palavras distorcidas e que só quem está muito dentro do contexto simbólico, do lugar, consegue perceber de certos detalhes simbólicos e misturar um pouco essa estranheza que temos da língua chinesa, mas em definição narrativa dos provérbios tem muito a ver com nosso folclore oral do antigamente.
Temos uma semelhança na forma de pensar e só que eles exercitam esse pensamento simbólico. Nós não. Nós levamos para folclore de facto. Quando contamos a história do leão que vai a mata ou não sei que, para nós, é só o folclore. Para eles não. Eles exercitam na prática essa força do folclore, do provérbio, eles põem em práctica. Por isso são mais disciplinados. Eles de facto exercitam o folclore e a linguagem simbólica deles. Nós usamos uma parte ou outra. Mas não faz parte da nossa língua. Nós não usamos essa abordagem.
Nós falamos em português e português é muito gramatical e às vezes não nos representa na forma de pensar. Nós pensamos pouco a falar português. Às vezes para nos comunicarmos é muito difícil. Comunicas melhor com magia no teu bairro. Transmitas melhor. O português nos limita muito. Se vais ao gueto, eles têm a língua mais dinâmica.
Tens o Sacerdote [kudurista] e peço a ele para traduzir as letras e eu leio…esquece a batida que às vezes é fortíssima…aquilo é riquíssimo! Uma coisa riquíssima em termos de inteligência de palavras, as rimas, a musicalidade da palavra.
Como chegaste a encontrar o actor chinês?
O actor foi difícil porque os chineses são muito reservados. Nós fomos na base, onde tem os grandes armazéns que é onde tem mais chineses. E mesmo ali foi difícil. Porque havia pessoas interessadas, mas estavam condicionadas ao governo. Não conseguiam envolver-se de forma tão rápida, urgente num projecto daqueles. Eles pediam tempo para mandar carta ao governo para explicar o que eles estavam a fazer, porque eles vêem da forma contratada já muitos condicionados. Mas claro com as hierarquias, as lideranças, tinham mais autonomia. Então nós fizemos casting com dois dos administradores e o Tony passou no casting e por acaso ele é mesmo gerente na cidade da China, que nos deu garantiu liberdade para filmar lá, nos garantiu milésimos de segundos para filmar porque ele é muito ocupado. É a pessoa mais ocupada que já vi na minha vida! Por semana, ele nos dava 15 minutos. Queria ter feito muito mais com ele mas, não consegui.
E ele tinha tido experiência com actor?
Não. Mas eu me inspirei na postura que ele tem quando está lá na cidade da China, porque ele é muito observador. Ele fica com o cigarro dele a passar, a observar, a supervisionar as lojas de longe e então seria a personagem inspirada nele. Então foi fácil. Eu só dizia: Tony és tu. Mas nós tivemos sorte porque ele não seria desde o início a pessoa que fazia narração. Era só o actor. A narração seria feita por um outro actor. E assim seria algum profissional, que soubesse fazer leitura.
A nossa tradutora arranjou-nos essa pessoa lindíssima, maravilhosa que é o Maeli Li que é um cantor de ópera. Ele vive na Alemanha, em Hamburgo. Estava a sair do Don Giovanni, que é uma peça de Mozart, estava a sair e queria fazer algo mais solto, mais leve porque tinha ficado muitos meses a fazer a ópera. Ele gostou do texto. E disse tudo bem, faço com muito prazer é só aqui há um erro—vamos ter que transformar o texto em cantonês porque o texto estava em mandarim. Nós enviamos o texto em mandarim e em português e em inglês. E ele disse para este tipo de poesia, tens mais vocabulário em cantonês que é uma língua mais rica em termos de poesia. Eles dizem que o mandarim é muito formal. Uma coisa … que eles usam para … é uma forma estatal, mais dura. Então tivemos que traduzir o filme em cantonês.
Qual foi a coisa que mais gostaste fazendo o filme e a coisa que mais gostas no produto final?
Eu não consigo mais ver o filme, porque só vejo erros. Mas uma coisa que eu de facto fico contente, é de ter feito o filme, então eu respeitei a minha proposta, a minha ideia. Executei da forma que algumas pessoas já respeitam, porque é uma ideia muito ousada. Por ser longa metragem as pessoas às vezes esperam que seja um produto que agrada a todos, porque não se faz longa metragem todos os dias em Angola. Então, quando se faz longa metragem com a responsabilidade que a G80 tem, espero que seja um filme mais aberto. Quando eu vejo o filme, o que me mais orgulho, como disse, é que realmente consegui criar aquilo que eu imaginava com meus textos e imagem.
A última coisa que queria perguntar é qual era a pergunta que querias que eu fizesse?
Para nós que não vem do circuito académico, que não se formou em cinema, às vezes leva muito tempo para acreditar na tua linguagem … do que podes contar uma história de outra maneira. Do início ao fim, do fim ao início. Acho que nós temos uma cidade muito interessante e mecanismos para nós artistas que nunca experimentamos. E temos uma oportunidade, hoje nosso cinema é original lá fora—na europa. As pessoas levam muito a sério. Às vezes as pessoas nos perguntam, de onde está a sair esta veia … mesmo com as curtas que eu levei agora a Espanha. Porque que este cinema em Angola é assim tão vibrante, tão, tão ‘fuck-off man!’ Não tem tantas definições estéticas. Mesmo em termos ideológicos, não está tão pautada ainda por motivações ideológicas … é mesmo uma coisa dos sentimentos … que eles sentem. Acho que a cidade é ainda muita virgem para nós. Ainda não temos feito nada. Então temos um campo aberto.