Onde está Angola?
Uma série da Netflix sobre a Rainha Njinga, uma das governantes historicamente mais importantes da África, deve ser motivo de muita comemoração. Mas a produção resultante desconsiderou amplamente o que os próprios angolanos pensam sobre a história e a cultura de seu país.
Njinga Mbandi é um dos mais importantes ícones da história de Angola: a rainha guerreira do século XVII que derrotou os portugueses, que jamais foi aprisionada ou reduzida à vassalagem e manteve-se soberana apesar das décadas de perseguição.
A construção da nação “Angola” na década de 1970 passou pela recuperação da trajetória histórica de Njinga como a grande líder que reuniu povos de diversas origens étnicas contra os interesses coloniais. Poemas de Agostinho Neto e romance de Manuel Pacavira Nzinga Mbandi, escrito na prisão colonial do Tarrafal, marcam a construção da consciência histórica da antiguidade da luta dos povos de Angola contra a colonização.
Uma série da Netflix sobre esta personalidade deveria ser motivo de muita comemoração para os angolanos, contudo muitas críticas foram feitas à produção em questão, que parece ter desconsiderado em boa medida o que os próprios angolanos pensam da sua história e cultura.
A primeira discussão é em torno do elenco. Ainda em 2021, logo quando foi anunciada a criação da série com produção executiva de Jada Pinkett Smith, o ator angolano Sílvio de Nascimento criou um abaixo-assinado denunciando a produção “sem que Angola tenha algum benefício disso, não está a ser filmado em Angola, nem consta equipa técnica e atores Angolanos, achamos isso repugnante e roça a usurpação cultural para benefício próprio, onde contam a nossa história sob o seu ponto de vista e muitas vezes distorcendo os factos reais usando a sua narrativa sobre nós, não podemos continuar a tolerar isso”, justificou o ator angolano.
Apesar da reinvindicação, nada foi feito neste sentido e a série foi filmada sem a participação de nenhum ator angolano. A única (e importante) presença de uma pessoa de origem angolana que participou foi a ex-ministra da cultura Rosa Cruz e Silva, a única com publicações especializadas em Njinga que apareceu nas entrevistas, e mesmo assim, como um espaço muito reduzido em relação aos demais entrevistados.
Por uma questão de produção, escolheu-se por gravar a série fora de Angola. Uma cidade cinematográfica foi construída na África do Sul para onde levou algumas dezenas de figurantes. Isto por certo permitiu algumas facilidades com relação à estrutura, questões relacionadas à língua inglesa e voos diretos para atores e figurantes vindos da Inglaterra e outras localidades centrais do Norte Global. Pouco procurou se aprender com a produção Angolana anterior Njinga, Rainha de Angola (2013), tanto ao nível de produção em contexto (e diálogo) angolano, quanto nas escolhas estéticas e de direção de arte. Isso talvez se reflita nas cenas em que Njinga aparece seguida do povo, tem-se a sensação de vazio, vácuos populacionais e de pouca força. Um problema estético (e por certo, também histórico) de enquadramentos e fotografia próprias para séries pensadas para serem consumidas em smartphones. Talvez se a série tivesse respeitado a história necessariamente épica da rainha, mais atores (preferencialmente angolanos) ou efeitos especiais poderiam solucionar a questão de mostrar a densidade demográfica das cidades da África centro-Ocidental de então.
A ausência da paisagem de Angola impacta o entendimento da trajetória de Njinga, uma vez que ela utilizou sabiamente da geografia local como estratégia de guerra. Por anos ela manteve seu kilombo transitando entre as várias ilhas do rio Kwzanza, a fim de enganar seus inimigos portugueses que não sabiam como a localizar em meio “aos tantos braços” do rio, como descreveu Cadornega em História Geral das Guerras Angolanas. Seria incrível ver representado em uma cena a fabulosa fuga de Kina Kinene, um imenso desfiladeiro por onde Njinga fugiu amarrada em cipós, ou as exuberantes Pedras de Mpungo Ndongo, que ela atacou com insistência por ser a morada do seu rival da linhagem Ari. Seria ótimo ver nas telas os cenários reais daquelas guerras, que tem tudo a ver com as estratégias nelas empreendidas. Ao filmarem a série em uma planície qualquer do continente, vários episódios históricos que estão atrelados à geografia se perderam. A mesma atenção aos takes aéreos e filmagens poéticas hollywoodianas sobre o rio Nilo deveria ser dispensada à outras paisagens africanas menos conhecidas para indústria. Talvez esta seria uma atenção básica ao espaço (como realidade, mas também como memória) em que o filme se passa.
A direção de arte definitivamente fez um trabalho lindo com as produções de peças, vestuários e cenários. A qualidade e a atenção aos detalhes são inquestionáveis. Porém, e esta é uma questão central em recentes produções Afro-cêntricas do Norte Global (incluindo as Afro-futuristas) estas são peças “fetiches”. Elas são projeções de imaginários negros e desejos estados-unidenses para com suas “raízes”. Mais do uma janela para olhar a África, esta projeção (traduzida em cenários, música/ dança e vestuários fetichezados) funciona como um espelho (um vidro para se olhar, mais do que para olhar através). Ignora-se, por não caber neste imaginário (que possui uma história própria) as realidades estéticas próprias de Angola.
Por exemplo, vários das ambientações, jóias, trajes e indumentárias são um pout-pourri de várias referências “africanas” presentes no imaginário negro do Norte Global. As joias douradas de Njinga são Ashante, as muralhas da cidade de Cabaça são muralhas das culturas sahelianas. Pontas triangulares (de referência Hauçá) e arquitetura de adobe refletindo as grandezas do antigo Mali, mas do que realidades históricas Angolanas. No topo do trono de Njinga (e zoom-in neste, antes de um corte de cena) está cravada uma “Aranha Nancy” (Anansi, Akan). O símbolo máximo de autoridade colocado sobre a cabeça do Ngola (reis e rainhas), por exemplo, a Kujinga¸ feita de ráfia, foi substituído por uma coroa de metal no estilo europeu. Seria só um detalhe, mas reflete a construção de representações sobre os africanos distanciados de seus próprios códigos culturais, como se a coroa de metal fosse um símbolo universal de monarquia. Olhou-se pouco para Angola, repetiu-se clichês do imaginário negro do Norte Global ou de referências ocidentais do século XIX, como a pintura de Achille Dévéria. Talvez pouca atenção tenha sido dada aos historiadores trabalhando diretamente com a produção de arte do filme. Uma tendência, infelizmente, constante na indústria. E mais infelizmente quando a consequência disso é a reprodução de olhares coloniais deslocados e/ou fetichizados.
A trilha sonora é também envolvente. Mescla o hip-hop como tema dos “bad guys” Jaga, à percussão “africana” macia para as cenas introspectivas da rainha. Porém não se ouvem instrumentos angolanos, nem danças propriamente angolanas. Não se ouvem marimbas e ngomas, com seus próprios ritmos. A lunga – instrumento musical de ferro com duas campânulas- principal símbolo do comando militar, insígnia fundamental dos jagas aparece rapidamente, mas não é sonada. Uma outra chance de trazer Angola (pelos ouvidos) não aproveitada, que traria aos espectadores a compreensão maior dos símbolos de poder e da função social da música, atrelada à organização militar, na sociedade Mbundu-Mbangala.
É de se comemorar que a Netflix abra sua programação e seu alcance internacional de streaming para histórias de rainhas africanas. A série documentário-drama é bela, tem uma dramatização fascinante e bons atores, entretanto, uma discussão importante a ser feita é que África está sendo apresentada nesta história. Uma África contada a partir de escutas africanas (em seus contextos precisos) ou uma fetichizada a partir de elaborações culturais alheias e fetichizadas. Que África está sendo representada pela grande indústria audiovisual?
Para além de representações, voltando para o materialismo que não deve deixar de ser um horizonte, outra pergunta é pertinente: o que ganham os angolanos em uma história/produção que excluiu efetivamente seus corpos, geografia, símbolos, práticas culturais e efetiva escuta. Até que ponto “são os leões contando as histórias”—como afirma a narradora na série—até que ponto é mais uma narrativa africana capturada, deslocada de suas origens, apropriada para atender os interesses de quem detém os monopólios da narrativa no cenário audiovisual global? Se é para contar histórias de-coloniais, que haja práticas de produção de-coloniais, pensadas dentro do desequilíbrio Norte e Sul. Ou ficamos apenas na mágica e ilusão cinematográfica hollywoodiana.