A música, a rima, a poesia e a arte em geral têm o poder de nos invadir, de nos transbordar, de nos fazer mudar de rota, de orientação, transformando nossa realidade pelos sentidos e energias. As palavras possuem poder, elas nos pertencem e podemos compartilhá-las, por outro lado, os bens materiais como roupas, casas, carros, celulares, tudo isso pode ir embora, mas o poder de nossas palavras e de nossas ideias, essas sim, se mantém para o resto da vida e além dela, marcando gerações e alimentando a ancestralidade.
Esse impacto pode ser reverberado no livro recém-lançado The Revolution will be a Poetic Act: African Culture and Decolonization, com uma seleção de textos do angolano Mário Pinto de Andrade (1928-1990). O título da obra nos faz lembrar da música “Revolution will not be televised” de Gil Scott-Heron (1949-2011), considerado um dos padrinhos do Hip-Hop, com grande repercussão na música preta, com seu estilo questionador, irônico e político, foi uma das grandes referencias da golden age que influenciaram o rap mundialmente.
Nessa música, assim como o título do livro, destaca-se a camada cultural para falar das revoluções, que não foram nem serão televisionadas. As revoluções não são momentos simples para serem facilmente aceitos e noticiados nos meios de comunicação tradicionais, possuem diversas camadas transgressoras e complexas em disputa, como disse Scott-Heron na música… a revolução não será televisionada “em quatro partes sem intervalos comerciais”.
O livro The Revolution will be a Poetic Act: African Culture and Decolonization foi lançado no final do ano de 2024 pela Polity Press, as responsáveis pela organização e tradução foram: Lanie Millar, professora associada de Espanhol e Português na University of Oregon, e Fabienne Moore, professora associada de Francês na mesma instituição, elas uniram suas especializações em literaturas africanas decoloniais para realizar esta obra. As páginas reúnem ensaios, discursos e reflexões do intelectual, poeta e político angolano Mário Pinto de Andrade, figura especial do movimento anticolonial africano e mundial. A publicação representa um esforço de tornar acessível ao público de língua inglesa uma seleção inédita do pensamento político-poético de Andrade, articulando sua contribuição intelectual à luta pela descolonização.
Nascido em Golungo Alto, Angola, estudou em Luanda, seguindo no ensino superior em Filologia clássica na Universidade de Lisboa, onde se deparou com as tensões raciais e políticas do contexto colonial na europa. A historiadora brasileira Helena Wakim Moreno pesquisou como essas experiências influenciaram sua reorientação acadêmica para área linguística africana, culminando em pesquisas sobre o kimbundu, idioma do grupo etnolinguístico Ambundu. Seu ensaio sobre o kimbundu, publicado em Luanda, representou uma crítica anticolonial às gramáticas e dicionários produzidos desde o século XVII, evidenciando seu compromisso com a valorização das línguas e culturas africanas.
Andrade foi um dos fundadores do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) em 1956, tornando-se seu primeiro presidente em 1960. Posteriormente, mesmo durante o exílio, continuou a influenciar o pensamento político-cultural africano, contribuindo com publicações e reflexões sobre a construção do nacionalismo e a descolonização. Além de sua contribuição acadêmica, desempenhou um papel central na organização política anticolonial em conexão com Moçambique, Guiné Bissau, Cabo Verde, atuando intensamente de 1965-1969 na Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCP), que foi um espaço de coordenação para organizações nacionalistas em África no processo de guerrilha.
Seus arquivos pessoais como correspondências, manuscritos e documentos diversos, podem ser acessados no site da Fundação Mário Soares, que possui um acervo para pesquisadores interessados na história da luta anticolonial em Angola, que podem complementar os interesses para quem for ler o livro.
The Revolution will be a Poetic Act: African Culture and Decolonization foi estruturado em quinze partes que discutem temas para compreender a articulação entre cultura, raça, identidade e luta anticolonial. Entre os textos, destacam-se reflexões sobre a poesia negra em língua portuguesa (Black Poetry Expressed in Portuguese; Black Poets of Portuguese Expression), críticas ao lusotropicalismo e à ideologia da assimilação (What is Luso-tropicalism?; Black-African Culture and Assimilation), além de análises sobre o papel estratégico da cultura na luta armada (Culture and Armed Struggle; The Armed Song of the Angolan People; Culture and National Liberation in Africa). Também integram a obra os textos de caráter mais teórico, como Theoretical Production of African Intellectuals, e duas entrevistas que lançam luz sobre a trajetória pessoal e familiar de Mário Pinto de Andrade.
Nos tópicos voltados para cultura e a poesia, os escritos de Andrade evidenciam a apropriação criativa da língua portuguesa por intelectuais negros africanos como forma de resistência simbólica ao colonialismo. Ao abordar as dinâmicas questionadoras à assimilação e o mito do lusotropicalismo, ele denunciava as estruturas de dominação cultural impostas pelo regime português e a falsa promessa de inclusão social por meio da aculturação. A relação entre cultura e luta armada, presente em textos como The Armed Song of the Angolan People, mostrou como as canções, poemas e narrativas orais foram instrumentos políticos nas frentes de combate.
Ao revisitar o pensamento de Mário Pinto de Andrade, este livro conectou o passado anticolonial às urgências do presente. As ideias ali reunidas atravessaram os oceanos e ocupam espaço para ecoar, especialmente, nos centros universitários do Sul Global. Historicamente buscam fortalecer a crítica ao colonialismo e à dominação imperialista. Em solo africano, os centros da Universidade de Dakar, da Universidade de Ibadan e da Universidade de Dar es Salam foram fundamentais na formação de intelectuais comprometidos com projetos emancipatórios e panafricanistas. No Brasil, essas discussões se consolidaram nos estudos africanos e afrodiaspóricos fundacionais do campo, com destaque para instituições: o Centro Estudos Afro-Orientais (CEAO) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), o Centro de Estudos Africanos (CEA) da Universidade de São Paulo (USP), e o falecido Centro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAA) da Universidade Candido Mendes.
Para além de recomendarmos a leitura desse livro, deixamos aqui a sugestão do artigo da Africa Is a Country “The films of Sarah Maldoror“, para conhecer mais sobre Sarah Maldoror (esposa de Andrade) uma das cineastas percursoras do audiovisual africano. Ler Mário Pinto de Andrade hoje é reconhecer a continuidade de uma tradição intelectual e militante que une África e diáspora, memória e ação, palavra e revolução. Esta coletânea não é apenas uma homenagem, é uma convocação para os estudos anti-eurocentristas.