Socialismo pink

Caio Simões de Araújo
Priscilla Marques Campos

A solidariedade socialista na Angola e Moçambique pós-coloniais tornou as pessoas queer invisíveis. Revisitar esse apagamento nos ajuda a reinventar a libertação de forma legítima.

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Em um romance recente, Me Chame de Cassandra, o escritor e poeta cubano Marcial Gala explora as (im)possibilidades da vida queer no mundo socialista transatlântico. A narrativa acompanha a vida e a morte de Raul, alguém que, tendo nascido em um corpo masculino, sentia como uma mulher. E não qualquer mulher, mas a reencarnação da sacerdotisa grega Cassandra. Assim como essa figura mitológica trágica, Raul também foi agraciado com o dom da premonição. Seu destino, ele bem sabia, era morrer em Angola.

Como muitos outros cubanos dos anos 1970 até o início dos anos 1990, quando a solidariedade socialista internacional definia a política externa de Fidel Castro em relação à África, Raul se alistou para lutar em uma guerra em uma terra estrangeira. Na época, cerca de 500.000 cubanos cruzaram o Atlântico para apoiar o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), apoiado pela União Soviética, contra forças rivais apoiadas pelos Estados Unidos e pelo apartheid da África do Sul, em uma iteração local exemplar da Guerra Fria global. No exército, onde era chamado de Marilyn Monroe pelos colegas soldados, Raul enfrentou discriminação, bullying e abuso sexual, e acabou morrendo em combate sob circunstâncias nefastas.

Me Chame de Cassandra navega entre a ficção, a alegoria e a história. Deuses do panteão grego e afro-cubano povoam a narrativa, conferindo-lhe um tom mítico. Mas há também um realismo marcante na descrição quase documental da vida cotidiana na Cuba revolucionária, ou na dura realidade da guerra em Angola. Como o próprio Gala apontou, o tema político de gênero e sexualidade sob o socialismo está no coração do romance. “O exército que foi para Angola era muito homofóbico”, diz ele. Gays, lésbicas e pessoas com identidades de gênero não normativas, não encontravam lugar na cultura política revolucionária. “Como poderia um jovem revolucionário da época apoiar alguém com tais ‘fraquezas’? Era assim que se dizia em Cuba naquela época”, explica Gala.

Embora a identidade de gênero de Raul nunca tenha sido explicitamente rotulada como transgênero, o romance abre possibilidades interessantes para pensar sobre diversidade sexual e de gênero no sul global socialista, incluindo em África. Isso é importante porque a maioria dos recursos disponíveis sobre as políticas de gênero e sexualidade do socialismo, tanto na academia quanto na cultura popular, tende a focar nas experiências europeias da Alemanha Oriental ou do Bloco Oriental.

Não é surpreendente que pessoas queer permaneçam marginalizadas na literatura acadêmica e na imaginação pública dos experimentos socialistas da África. Afinal, grande parte do que foi publicado sobre esse período tem se concentrado nas grandes questões da construção nacional pós-colonial, da guerra civil e da geopolítica. Embora nos últimos anos tenhamos visto a emergência de uma agenda de pesquisa mais ampla, com um crescente interesse na política afetiva e cultural da Guerra Fria na África, a sexualidade e a identidade de gênero continuam sendo preocupações marginais, quando não são totalmente negligenciadas.

Para mim, como pesquisador queer trabalhando principalmente em Angola e Moçambique, o silêncio predominante sobre as experiências das pessoas queer sob o socialismo estatal pós-colonial é preocupante. Perpetuando uma narrativa conservadora e excludente que coloca lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e intersexuais (LGBTI) fora da história — uma afirmação que se repete em outras partes do continente, onde se diz que a homossexualidade é essencialmente “não africana”. Segundo essa visão, o desejo pelo mesmo sexo e a diversidade de gênero não têm raízes no passado africano, sendo fenômenos relativamente novos datando dos anos 1990. Isso não deve ser surpreendente, considerando que, na época, processos de mudança política, transição econômica e globalização estavam remodelando as normas sociais e mudando os limites da moralidade pública, muitas vezes alimentando sentimentos reacionários e dando origem a um discurso público distintivamente anti-LGBTI.

Em Angola, por exemplo, é comum ouvir que “na época de Agostinho Neto, não havia gays” (referindo-se ao período imediato pós-independência, de 1975 a 1979, quando o combatente pela liberdade, Agostinho Neto, serviu como primeiro presidente do país). Eu ouvi essa expressão pela primeira vez de Augusto, um homem gay que participou de um projeto de história oral que eu conduzi de 2019 a 2022. Realizado com o apoio do Arquivo Queer GALA, uma organização de cultura e memória LGBTI sediada em Joanesburgo, o objetivo principal da pesquisa era criar um arquivo queer documentando as experiências vividas de pessoas LGBTI em Luanda e Maputo. Durante este processo, tive a sorte de contar com a colaboração inestimável de parceiros locais, nomeadamente o Arquivo de Identidade Angolano (AIA), um coletivo feminista liderado por mulheres lésbicas, bissexuais e queer em Luanda; e a LAMBDA, a primeira organização da sociedade civil LGBTI estabelecida em Moçambique, em 2006. De certa forma, todos nós queríamos capturar a gênese do próprio ativismo queer.

Embora a maioria dos interlocutores fosse relativamente jovem, nascidos nos anos 2000, alguns eram de uma geração mais antiga. Nascidos nas décadas de 1950 e 1960, tiveram experiências em primeira mão do período socialista tardio e suas consequências, especialmente em Moçambique. Assim como em Angola, aqui a revolução pós-colonial foi fundamentada em uma moralidade socialista que celebrava formas particularmente heteronormativas de união, amor e construção familiar, por exemplo, aquelas celebradas entre homem e mulher, definidas binariamente, em uniões monogâmicas autorizadas pelo estado. A diversidade sexual e de gênero encontrava pouco espaço no espaço público ou na cultura política. Isso não quer dizer, é claro, que não existisse, mesmo que de forma encoberta e clandestina.

Em Moçambique, a cultura revolucionária propagada pelo partido governante, FRELIMO, foi infundida com uma moralidade socialista imediatamente suspeita como “decadente” associada aos centros urbanos coloniais. Isso incluía o consumo de álcool e drogas recreativas, bem como a prática percebida de promiscuidade sexual ou libertinagem. Como argumentou o pesquisador moçambicano Benedito Machava, após a independência, campanhas estatais de purificação moral efetivamente resultaram em uma repressão à economia noturna urbana e consideraram as pessoas associadas a ela como “reacionárias” e “antissociais”. Trabalhadoras sexuais, em particular, foram famosamente presas e enviadas para “campos de reeducação” rurais, onde foram forçadas a adotar a cultura revolucionária da nova sociedade, uma história poderosamente capturada no filme moçambicano Virgem Margarida. Embora os homossexuais nunca tenham sido explicitamente incluídos na lista do partido de pessoas que precisavam de reeducação política, as histórias orais sugerem o contrário. António, por exemplo, um homem gay nascido em Lourenço Marques (atual Maputo), contou-me sobre seus amigos que também foram pegos na onda moralista do partido. “A FRELIMO não gostava de homossexuais”, disse ele. “Eles prenderam meus amigos, os levaram para lá (para os campos). Queriam que eles deixassem essa vida”.

No entanto, e apesar da natureza heteronormativa explícita do contexto político pós-independência, outros interlocutores sugeriram que o socialismo de estado também poderia abrir possibilidades de amor e liberdade queer. Isso estava, em grande parte, ligado às formas de mobilidade transnacional possibilitadas pela solidariedade socialista. Assim como Angola recebeu milhares de soldados cubanos neste período, Moçambique atraiu um grupo diversificado de trabalhadores estrangeiros chegando ao país para ajudar na construção nacional pós-colonial. Conhecidos como cooperantes, eles vinham do bloco socialista ou de círculos esquerdistas ocidentais e rapidamente se tornaram catalisadores de uma cultura queer clandestina envolvendo homens estrangeiros e moçambicanos. Tendo acesso preferencial a recursos em um momento em que a escassez era a norma, eles organizavam festas privadas onde a alegria e o amor queer podiam florescer. Embora muitos desses encontros pudessem ter sido passageiros ou meramente sexuais, alguns resultaram em ligações românticas e duradouras. Guto, por exemplo, contou-me que muitos de seus amigos desse período acabaram deixando o país para viver com seus parceiros cooperantes. Abdul, outro homem gay de Maputo, disse-me que tinha um namorado soviético. Até hoje, ele ainda guarda uma lembrança desse relacionamento – uma boneca-russa em sua estante enquanto conversávamos.

A solidariedade transnacional também permitiu que alguns moçambicanos queer experimentassem o mundo socialista de forma mais ampla. Na década de 1980, programas de cooperação bilateral facilitaram a migração de milhares de trabalhadores moçambicanos para a Alemanha Oriental, em números estimados entre 15.000 e 20.000 pessoas. A maioria delas era composta por homens, estabelecidos em cidades alemãs para trabalhar em fábricas, como parte de programas de aprendizagem em diferentes ofícios. Este foi o caso de Essa, um homem gay de Maputo que viveu em Sangerhaussen de 1986 a 1989, trabalhando em uma fábrica de raspas. Essa lembra-se de seu tempo na Alemanha Oriental com carinho e desgosto. Ele sente falta dos muitos amigos que fez e dos amantes que teve, recorda com muito afeto das experiências que teve e parecia valorizar a liberdade que conseguiu alcançar ao fugir para os clubes gays em Berlim nos fins de semana e ao se recusar a seguir a disciplina da fábrica. Ele também ressente o mau tratamento a que foi submetido no chão da fábrica — na realidade vivida de vigilância, exploração e discriminação (de fato, ele descreveu os moçambicanos na Alemanha Oriental como “ex-escravos civilizados”). Sua experiência sugere que as histórias queer nos permitem questionar os limites normativos do projeto socialista de estado, desenterrando instâncias de agência e intolerância queer.

As histórias pessoais narradas em obras de ficção como Me Chame de Cassandra, ou em entrevistas de história oral com pessoas como António, Abdul, Guto e Essa, nos encorajam a recalibrar nossas lentes históricas e prestar atenção a formas de experiência histórica e memória que não se encaixam facilmente nas grandes narrativas do socialismo de estado, mas sugerem itinerários mais complicados e queers. Ao fazê-lo, contribuímos para um movimento crítico mais amplo por inscrever as pessoas LGBTI na história, reconhecendo seu valor político e perspectivas únicas sobre as tensas políticas de gênero e sexualidade no Sul Global. As experiências pessoais compartilhadas aqui mostram que as circulações pelo mundo socialista abriram, para alguns homens queer, a possibilidade de construir amizades, buscar envolvimentos românticos e cultivar comunidades afetivas que, em última análise, lhes proporcionaram um espaço para experimentar liberdade sexual e libertação social. Sem dúvida, mais trabalho de memória e de pesquisa acadêmica precisa ser feito sobre como mulheres queer e pessoas de gênero não normativo, podem ter se inserido ou resistido a esses mesmos processos históricos. Isso pode nos ajudar ainda mais a pensar sobre a pós-colonialidade, a libertação e a revolução sob uma perspectiva queer, para além das versões convencionais e masculinistas do “roteiro de libertação“, frequentemente baseadas em narrativas de luta armada e resistência política organizadas em torno de locais institucionalizados (como o movimento de libertação como força motriz da história). Como muitas das promessas da independência e revolução pós-colonial permanecem não cumpridas hoje, queerizar o passado pode nos ajudar a reimaginar a libertação de maneira nova, enquanto buscamos criar novos futuros emancipatórios.

About the Author

Caio Simões de Araújo is a Curatorial Fellow at the Centre for Humanities Research (University of the Western Cape) and the Research Officer at the Other Foundation.

About the Translator

Priscilla Marques Campos is a Brazilian master of African social history. She is chief editor of Hydra Journal and enconto orí Review.

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