Quando eu digo África

Sean Jacobs
Kathryn Mathers
Priscilla Marques Campos

Por que as histórias sobre o sofrimento africano são tão persistentes?

Bob Geldof com Ban Ki-moon, 2010. Crédito da imagen para Eskinder Debebe por UN Photo via Flickr CC BY-NC-ND 2.0 Deed.

No início do documentário “A Maior Noite na Música Pop” (The Greatest Night in Pop Music), lançado no início de 2023, o cantor e compositor americano Lionel Richie descreveu como ele e Michael Jackson criaram a melodia de “We Are The World”, o single de caridade gravado por artistas americanos em 1985 para arrecadar dinheiro para o alívio da fome na Etiópia. “Tivemos que identificar imediatamente que tipo de música queríamos”. Para a melodia, eles rejeitaram uma balada de R&B ou um estilo de hino, como “The Star-Spangled Banner”. Richie então começa a bater os pés e a vocalizar “Rule, Britannia”. Satisfeito consigo mesmo, ele conclui: “Aqui está. Este é o seu modelo. E uma vez que você tenha isso, você sabe o que colocar em cima.” Ninguém, nem Richie nem os cineastas, pareciam notar a ironia de tentar aliviar o sofrimento no Sul Global, se inspirarando em uma tradição musical que glorificava a expropriação e extração de recursos naturais nesses países.

“We Are the World” vendeu 20 milhões de cópias impressas e se tornou o primeiro single certificado como multi-platina.

O humanitarismo das celebridades da década de 1980, do qual a música fazia parte, estava tendo um novo momento. De 26 de janeiro até 30 de março de 2024, o Teatro Old Vic de Londres é o lar de “Just for One Day”, um musical sobre o Live Aid, o concerto transatlântico que, em 1985, também arrecadou dinheiro para as vítimas da fome na Etiópia. Pelo menos 70 artistas se apresentaram, incluindo David Bowie, The Who, Queen, The Police, Elton John, Paul McCartney e Diana Ross, em dois locais: uma plateia de 72.000 pessoas no Estádio de Wembley, em Londres; além de 89.000 pessoas na Filadélfia, com outras 1,9 bilhão de pessoas em 130 países assistindo à transmissão ao vivo pela TV.

Na mídia convencional, o Live Aid ainda é lembrado, quase quarenta anos depois, como “o dia em que a música uniu o mundo”. A maior parte dos recursos de eventos como este foram destinados para funcionários e escritórios no Ocidente e milhões de libras foram arrecadadas em teletons do Live Aid e desviadas para comprar armas para grupos rebeldes etíopes. Como resultado, as populações que os organizadores do concerto afirmavam ajudar, foram submetidas a mais violência pelas mãos do Estado e dos movimentos rebeldes. Também escapou aos ativistas que as causas da fome eram políticas e exigiam uma solução nesse nível. Assim, essa celebração musical e da cultura de doação, ajudou a criar outra paródia do humanitarismo.

Em nosso trabalho sobre como a África é imaginada e o que essas imaginações significam — Kathryn escreveu um livro sobre viajantes americanos para a África, e Sean fundou este site (Africa Is a Country) e o editou por quase uma década e meia — somos repetidamente informados de que a conscientização do problema resolveria o problema; que as pessoas que tentam fazer o bem na África entendem seu privilégio, prestam atenção à sua posição e ao desequilíbrio de poder, e são cuidadosas com as histórias que contam sobre seu trabalho e as pessoas com quem trabalham. E quando não reconhecem adequadamente sua posição, são chamadas no Twitter, ou X, ridicularizadas por grupos estudantis conscientizados na Europa Ocidental ou na América do Norte, ou criticadas por contas ativistas do Instagram como @barbiesavior ou @nowhitesaviors para “fazer melhor”.

Não surpreendentemente, também há pessoas dentro das indústrias de desenvolvimento e humanitárias que pressionam e instigam seus colegas e doadores a repensarem seu trabalho e suas formas de doação. No entanto, o impacto na indústria de turismo voluntário em crescimento (em que jovens viajam para ajudar populações vulneráveis), no mundo tradicional da filantropia, baseada em doadores e nas viagens missionárias para a África tem sido pouco perceptível as tentativas de limpar o humanitarismo. Pesquisas mostram que a intervenção pública orientada pelo Estado ainda é a estratégia mais eficaz para melhorar as condições das pessoas em países em desenvolvimento, mas você não ouvirá isso destacado em uma esfera pública que favorece a autoajuda e o individualismo.

A publicidade frenética para “Just for One Day” repete todos os clichês que esperávamos que os ocidentais deixassem para trás: “Há um pano de fundo de agitação social e revolução, uma crise humanitária que fala às nossas obrigações morais como uma sociedade mais ampla, e então, no centro, um eletrizante concerto ao vivo cheio de nomes famosos.” Também duvidamos que o musical lide seriamente com a alegada corrupção ou com o destaque da agência ocidental — o que os críticos se referem como “salvadores brancos” ou o “complexo do salvador” — que estava no centro do Live Aid. Bob Geldof, que organizou o Live Aid e cuja história estará no centro de “Just for One Day”, não demonstrou remorso e humildade em relação a esses eventos de 1985 e suas muitas legados.

Para a maioria das pessoas, o termo “salvadores brancos” refere-se a missionários, turistas voluntários, ciberativistas, Oprah, Barbie ou até mesmo Geldof. Mas também é um sistema ou um conjunto de estruturas. Por muito tempo, temos prestado muita atenção às representações, imagens, histórias e locais da cultura popular que ajudam a sustentar e a construir esse complexo industrial de salvadores brancos. Mesmo que essas imagens tenham evoluído e mudado para refletir críticas, elas mantêm relações que permitem que as economias extrativas coexistam com uma narrativa de cuidado e múltiplas versões de impulsos de caridade.

A minissérie documental “Savior Complex” tem circulado pelos serviços de streaming desde o final do ano passado, e as respostas principalmente positivas que gerou foram mais um exemplo do motivo pelo qual essas narrativas persistem. A série foca na organização sem fins lucrativos Serving His Children, fundada pela americana Renee Bach. Ela viajou para a África como missionária homeschooling aos 19 anos e tratou de crianças doentes de Uganda sem qualificações médicas, porque Deus disse a ela para fazê-lo.

Pelo menos 105 crianças morreram.

O retrato poderoso de Bach em Savior Complex mostra a arrogância necessária quando uma pessoa não qualificada, não treinada, é apoiada financeira e moralmente para intervir no sistema de saúde de outro país e nas vidas de bebês desnutridos e de suas famílias. Também revela a dificuldade de um desafio coerente de dentro e de fora do país. Em Uganda, houve indignação depois que as autoridades responderam fechando a organização de Bach, mas permitiram que ela abrisse uma outra em parceria com o governo. Um advogado ugandense se levantou para lutar por justiça para as famílias, e o filme conta também as histórias dela e de seus clientes. No entanto, a série retrata a batalha central (refletindo como a maioria da mídia ocidental chegou à história) como uma que acontece nas redes sociais entre duas mulheres brancas: Bach e uma das mulheres por trás do @nowhitesaviors.

A história de Bach oferece uma intervenção essencial em qualquer crítica ao salvacionismo branco, mostrando como os sistemas locais e as pessoas locais estão resolvendo seus problemas. O esforço da advogada Primah Kwagala, que levou Bach aos tribunais em nome das mães de duas de suas vítimas, demonstrou a necessidade e as lutas dos africanos para navegar nas políticas dos estados pós-coloniais. Sua história poderia ter sido a mais importante do documentário, no entanto, Savior Complex insistiu em centralizar os ocidentais brancos e suas lutas. Uma história sobre ugandenses enfrentando os problemas de seu próprio governo foi ofuscada pelo clássico clichê que assola as representações da África — crianças famintas e sofrendo, em muitos casos, com uma pessoa branca ajudando-as. Essas pessoas brancas são tanto os missionários sinceros deixando crianças morrerem porque realmente acreditam que Deus está dizendo a elas para fazerem trabalho médico, quanto os “não-salvadores” brancos que fazem sua missão salvar bebês negros de pessoas brancas.

Por que essa história sobre o sofrimento africano é tão persistente?

Uma coisa que aprendemos com nosso trabalho é que as imagens importam — representações, histórias e cultura popular não apenas refletem as desigualdades produzidas pelas histórias de colonialismo e economias extrativas contínuas, mas também mostram como as imagens ajudaram a criar e continuam a manter essas relações. Quando esse contexto não é articulado e essas histórias permanecem invisíveis nas representações e histórias contadas por ocidentais, essas imagens disfarçam a relação desigual entre aqueles que desejam ajudar e aqueles que precisam de ajuda. A relação entre trabalhadores de ajuda, estados locais e legisladores adiciona uma dimensão apenas insinuada em críticas como Savior Complex ou por ativistas nas redes sociais: essas críticas raramente abordam o quanto trabalhadores locais, comunidades e governos dependem do complexo industrial humanitário. Sem entender como é possível que, em primeiro lugar, jovens ocidentais não qualificados e ingênuos recebam responsabilidade pela vida de outras pessoas, é fácil pensar que o fenômeno do complexo do salvador é apenas sobre uma mulher e apoiadores e doadores específicos. Pior ainda, é a narrativa não tão sutil de que alguns brancos poderiam dar uma “ajuda” melhor, que permite a possibilidade imaginada de um “melhor salvador branco”.

Em segundo lugar, quando as origens e as estruturas que mantêm as desigualdades são normalizadas e parecem naturalmente presentes, torna-se mais fácil compartilhar sem pensar repetidamente imagens destinadas a provocar emoção e raiva, repetindo a narrativa prejudicial de que a África é indefesa e relevante apenas como um local para a autodescoberta de um ocidental. Contar histórias sobre como os brancos podem navegar em seus sentimentos e desejos pode ser cativante, mas nega qualquer crítica possível no complexo industrial do salvador branco. Mesmo quando se desculpam por lesões sistêmicas e violência estrutural, os ocidentais criticam indivíduos e buscam absolvição de ações individuais.

Em uma entrevista para um projeto em que estamos trabalhando, o falecido escritor Binyavanga Wainaina, famoso por ridicularizar como os jornalistas ocidentais escrevem sobre a África, descreveu de que forma o Live Aid e o single “Do They Know It’s Christmas?” revelaram como o Ocidente o percebia, a sua família, os quenianos e os africanos como um todo na época: “A música não parou na Etiópia’, ela disse ‘África’. Então, estamos sentados aqui assistindo as pessoas chegarem e dizerem ‘Estamos vindo aqui para salvá-los’, e que precisamos ser cuidados por pessoas brancas em todo o mundo. Nunca me ocorreu até aquele momento: é assim que eles nos veem.”

About the Author

Sean Jacobs, publisher of Africa is a Country, is on the faculty of The New School. He edits the substack, Eleven Named People.

Kathryn Mathers is the author of two books: “Travel, Humanitarianism, and Becoming American in Africa,” and “White Saviorism and Popular Culture: Imagined Africa as a Space for American Salvation.”

About the Translator

Priscilla Marques Campos is a Brazilian master of African social history. She is chief editor of Hydra Journal and enconto orí Review.

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