Rememorando os 190 anos da Revolta dos Malês no Brasil

Ana Lucia Araujo
Priscilla Marques Campos

Há 190 anos, a Revolta dos Malês na Bahia, liderada por escravizados africanos muçulmanos, abalou as bases do Brasil e ecoou temores globais de um possível novo Haiti.

Capoeira, Salvador, Bahia, Brazil © Joa Souza via Shutterstock.

Em 24 de janeiro de 1835, rumores de que africanos planejavam uma revolta começou a circular em Salvador, então capital da província da Bahia, no Brasil. A notícia rapidamente chegou à população negra, escravizada e livre, que compunha a maioria da cidade. Enquanto os proprietários de escravizados entravam em pânico, a polícia reagiu freneticamente, vasculhando as casas de homens e mulheres africanos libertos, suspeitos de participação na conspiração.

No entanto, a polícia não conseguiu deter imediatamente a insurreição. Enquanto a caça aos suspeitos continuava, grupos de africanos armados com espadas, lanças, pistolas e outras armas tomaram as ruas de Salvador, transformando a cidade rapidamente em um campo de batalha. Liderada por africanos muçulmanos, o processo foi reconhecido como Revolta dos Malês, sendo o maior levante urbano de escravizados nas Américas.

As repercussões internacionais da revolta e o pânico às elites provocado derivaram do medo persistente dos escravocratas de que uma insurreição escrava pudesse acabar com a escravidão e dar origem a um “novo Haiti”. Meu livro, Humans in Shackles: An Atlantic History of Slavery, mostra como diversos jornais internacionais noticiaram a revolta dos africanos muçulmanos no Brasil. A Revolta dos Malês foi o ápice de uma série de levantes menores ocorridos na Bahia durante as três primeiras décadas do século XIX.

O Brasil tornou-se independente de Portugal em 1822, mas o processo de independência, negociado, manteve a monarquia como forma de governo. Contudo, o período pós-independência foi marcado por divisões e instabilidade política. Secas provocaram escassez de alimentos, desencadeando uma crise econômica que afetou diretamente a Bahia.

O contexto internacional também teria influenciado. Após a corte portuguesa fugir da invasão de Napoleão Bonaparte e se realocar no Brasil em 1808, a Grã-Bretanha pressionou Portugal a acabar com o tráfico de escravizados para o Brasil, assinando vários tratados para interromper o tráfico infame. Esse processo aumentou o preço dos escravizados e culminou com a aprovação de uma nova legislação que proibia o transporte de africanos escravizados para o Brasil em 1831. Com o crescimento da economia açucareira na Bahia, os proprietários de escravos aumentaram a carga de trabalho, agravando suas condições de trabalho. Em resposta, os escravizados resistiram fugindo, juntando-se a comunidades de quilombolas e organizando revoltas.

Na Bahia, os africanos muçulmanos nascidos no continente, falantes de yorùbá, fossem escravizados ou livres, eram chamados de “malês”. Assim, a revolta ficou conhecida como Revolta dos Malês, por ter sido liderada por um grupo de homens muçulmanos yorùbás, escravizados e libertos.

Nos 15 anos que antecederam a rebelião de 1835, quase 60% da população africana nascida no continente na Bahia e em Salvador como um todo, era composta por indivíduos escravizados da Costa do Benim, região costeira que abrange hoje o Togo, a República do Benin e a Nigéria.

A maioria desses africanos era composta por falantes de yorùbá (chamados de nagôs no Brasil), capturados durante as guerras entre os muçulmanos fulas e os estados subjugados pelo Império de Oyó. Outros foram feitos prisioneiros pelo exército do Reino do Daomé, que travava guerras contra seus vizinhos yorùbás, incluindo os de Oyó.

Em outras palavras, o contexto da África Ocidental, especialmente as guerras que levaram à desintegração do Império de Oyó e à concentração de falantes de yorùbá na Bahia nos anos anteriores à revolta, foi central para compreender a Revolta dos Malês.

“Bahia,” by Jules Marie Vincent de Sinety, 1838. From the Coleção Brasiliana, Pinacoteca do Estado de São Paulo (via Wikimedia Commons).

Vários desses africanos eram guerreiros, prisioneiros de guerra ou capturados como em conflitos, razão pela qual alguns estudiosos compreendem a Revolta dos Malês como uma continuação do jihad africano iniciado do outro lado do Atlântico.

A maioria dos falantes de yorùbá praticavam a religião dos orixás. Enquanto alguns eram muçulmanos na África Ocidental, outros podem ter se convertido ao islamismo após chegar ao Brasil. No entanto, pode-se presumir que a maioria desses indivíduos nascidos na África Ocidental, de diferentes grupos étnicos, especialmente os que viviam em Salvador, foram batizados na Igreja Católica Romana e, portanto, receberam nomes católicos.

Mesmo quando esses africanos escravizados conseguiam comprar sua liberdade, sua posição social permanecia precária. A Constituição Brasileira de 1824 estabelecia que apenas os libertos nascidos no Brasil se tornavam cidadãos após a manumissão. Assim, os africanos libertos eram considerados estrangeiros e, apesar de existir um procedimento, adquirir a cidadania brasileira era impossível.

Após uma série de rebeliões no início do século XIX, as autoridades brasileiras controlavam rigorosamente os africanos libertos. Um decreto de 1830 restringia a mobilidade de homens e mulheres nascidos na África, mesmo em suas próprias cidades, onde eram obrigados a portar um passaporte emitido pelas autoridades brasileiras, confirmando sua “boa conduta”.

Nesse contexto de medidas repressivas crescentemente anti-africanas, o islamismo tornou-se um refúgio que lhes oferecia uma ferramenta para resistir à escravidão e à discriminação anti-africana. Por fim, sob a liderança de um pequeno número de muçulmanos falantes de yorùbá, dezenas de yorùbás não muçulmanos, escravizados e libertos, uniram-se à Revolta dos Malês.

A Revolta dos Malês foi planejada para começar na madrugada do domingo, 25 de janeiro de 1835, durante um dia festivo em comemoração a um santo católico, quando tanto os escravizados quanto os senhores de escravos estariam distraídos. Além disso, no calendário árabe ou hijri, o dia 25 de janeiro correspondia a 25-Ramadan-1250 AH, poucos dias antes do fim do jejum do Ramadan para os muçulmanos.

Os insurgentes na cidade esperavam ser acompanhados pelos escravizados das plantações vizinhas, mas, como os rumores sobre a conspiração se espalharam rapidamente, a polícia iniciou uma operação para prender os suspeitos. Ainda assim, 600 homens tomaram as ruas e lutaram por várias horas. Sendo a Revolta dos Malês derrotada no domingo.

“Vista da cidade de Salvador,” by Anonymous, 1860. From Coleção Brasiliana Iconográfica, Pinacoteca do Estado de São Paulo (via Wikimedia Commons).

As autoridades baianas interrogaram e prenderam centenas de suspeitos. Os principais jornais brasileiros, no Rio de Janeiro, então capital do Império Português, produziram um relatório feito pelo chefe de polícia da Bahia narrando em detalhes os eventos de 24 e 25 de janeiro de 1835.

O relatório estimou que 50 insurgentes foram mortos e muitos outros ficaram feridos. Tanto o relatório quanto a investigação que se seguiu concluíram que a maioria dos insurgentes africanos eram muçulmanos familiarizados com o Alcorão, capazes de ler e escrever em árabe. Os insurgentes vestiam túnicas brancas (abadás), que apenas muçulmanos usavam em espaços privados. A polícia também encontrou pessoas portando amuletos, orações, manuscritos devocionais e outros itens escritos em árabe.

Os proprietários de escravos brasileiros e as autoridades governamentais estavam aterrorizadas com a possibilidade de africanos liderarem outras rebeliões na Bahia e até no Rio de Janeiro.

Artigos de jornais no Rio de Janeiro criticavam a grande população de africanos escravizados no Brasil devido à continuidade do tráfico ilegal de escravos. Eles exigiam que as autoridades brasileiras deportassem para o continente africano aqueles que, introduzidos no Brasil após a proibição legal do tráfico em 1831, fossem posteriormente emancipados e adquirissem o status de “africanos livres”.

Relatando rumores de novas conspirações africanas e pedindo maior vigilância sobre homens e mulheres nascidos na África como medida para evitar novas rebeliões, alguns artigos de jornais até alertavam sobre a influência de “doutrinas haitianas pregadas com impunidade”. No entanto, essas referências não se baseavam em uma conexão direta, mas refletiam os temores dos proprietários de escravos de uma revolta mais ampla que, como no Haiti, levaria ao fim da escravidão.

Com base no relatório do chefe de polícia da Bahia, de meados de março até o final de agosto de 1835, jornais britânicos, franceses, espanhóis, norte-americanos e alemães noticiaram a Revolta dos Malês.

Um jornal britânico afirmou que “alguns dos prisioneiros foram encontrados com pequenos livros árabes e papéis dobrados, inscritos com versos do Alcorão, que os maometanos africanos estão acostumados a usar no corpo como amuletos”.

O relatório original brasileiro mencionava que alguns rebeldes eram escravos de cidadãos britânicos residentes em Salvador, jornais britânicos falsamente relataram que “os insurgentes consistiam quase inteiramente de negros que eram os favoritos de seus senhores e sempre foram particularmente bem tratados”. Como a escravidão já havia sido abolida nas colônias britânicas em 1835, os jornais britânicos apresentaram a rebelião como um alerta contra os horrores da escravidão. Enquanto denunciavam o tráfico ilegal de escravos para o Brasil, também retratavam os residentes britânicos no Brasil supostamente como senhores benevolentes, promovendo-se como salvadores.

Nos meses seguintes, jornais internacionais continuaram relatando as ansiedades dos proprietários de escravos sobre novas insurreições. Em maio de 1835, o jornal francês Le Spectateur e o jornal espanhol El Guerrero y el compilador relataram temores persistentes de novas rebeliões em outras partes do país, especialmente na capital, Rio de Janeiro.

Como consequência da revolta, 231 pessoas foram julgadas. Das 135 sentenças documentadas, 28 escravizados foram absolvidos, quatro homens nascidos na África foram executados e 12 sentenças de morte foram comutadas para prisão e açoites. Dezesseis pessoas libertas foram condenadas à prisão, 8 aos trabalhos forçados, 40 escravizados foram açoitados e 34 libertos foram deportados. Posteriormente, mais de 150 africanos libertos foram incluídos na lista de deportação.

A Revolta dos Malês foi a mais importante rebelião de escravizados no Brasil. Passados 190 anos, ela permanece como um símbolo de resistência contra a escravidão e a luta contra o racismo anti-africano no Brasil e nas Américas.

About the Author

Ana Lucia Araujo is a historian at Howard University in Washington DC. Her latest book is Humans in Shackles: An Atlantic History of Slavery (University of Chicago Press, 2024).

About the Translator

Priscilla Marques Campos is a Brazilian master of African social history. She is chief editor of Hydra Journal and enconto orí Review.

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