O Brasil é um país africano
- Priscilla Marques Campos
Após marcar seu primeiro Dia Nacional da Consciência Negra como feriado federal, o Brasil reafirma sua profunda herança africana e as persistentes desigualdades raciais.
É noite de segunda-feira de Carnaval em Salvador, Bahia — “Cidade Negra” do Brasil. Vestida de amarelo, vermelho, preto e branco, uma grande multidão de pessoas comuns, artistas e políticos se reúnem no bairro da Liberdade. Sob a varanda do terreiro de Candomblé Ilê Axé Jitolu, eles participam de uma breve cerimônia espiritual que abre o desfile do bloco de Carnaval Ilê Aiyê.
A África não é um país. No entanto, se há um país nas Américas onde podemos encontrar a África, esse país é o Brasil. Como parte do reconhecimento há muito esperado do passado africano do Brasil, pela primeira vez em 20 de novembro de 2024, o Brasil comemorou o Dia Nacional da Consciência Negra como feriado federal.
De agora em diante, esse reconhecimento oficial da duradoura herança africana do Brasil, simbolizada pelo 20 de novembro, é mais importante do que nunca, já que o racismo que acomete a população negra, continua sendo um tumor maligno crescente no país. Embora a Constituição Brasileira de 1988 tenha estabelecido que o racismo é crime, o número desses casos registrados no Brasil aumentou 127% em 2023. No Brasil, crimes de racismo e injúria racial são inafiançáveis.
Ainda mais alarmante é o fato de que, em 2023, cerca de 70% da população carcerária brasileira, aproximadamente 850 mil pessoas, era composta por negros, o maior índice registrado em 20 anos. Além disso, a população negra representa mais de 70% das vítimas de homicídios dolosos no país.
Hoje, mais de 50% da população do Brasil, que soma cerca de 216 milhões de pessoas, se identificam como negras (pretas) ou pardas. Embora o Brasil tenha testemunhado uma imigração mais recente de países africanos, como Angola e Senegal, a maior parte dos novos migrantes pretos nos últimos 20 anos vieram do Haiti. Enquanto essa onda voluntária de migrantes africanos e negros é recente, a conexão do Brasil com a África está amplamente ligada à longa história do tráfico atlântico de escravizados. Cerca de seis milhões de pessoas africanas escravizadas foram transportadas à força para o Brasil durante o período do tráfico infame. O país também foi o último nas Américas a abolir a escravidão, em 1888.
Desde as ruas de Porto Alegre, no extremo sul do Brasil, até os mercados movimentados de Salvador, capital do estado da Bahia, no Nordeste, os traços dessa duradoura presença africana permanecem visíveis na culinária, na música, na dança, nas artes marciais, na cultura material e nas artes visuais.
Apesar dessa significativa herança africana, a grande maioria da população negra brasileira continua social e economicamente excluída. O racismo tem raízes antigas, disfarçado pela ideia de democracia racial, que promove o mito de um país miscigenado livre de racismo. Nada poderia estar mais distante da verdade. Desde a era colonial e ainda hoje, o racismo à população negra está escancarado no país.
Embora a exclusão sistêmica e o racismo profundamente enraizado persistam, o legado duradouro da cultura negra africana está presente nas práticas religiosas e culturais do Brasil. Isso é particularmente evidente nas igrejas católicas, onde imagens de santos negros são frequentemente visíveis. Um exemplo é São Elesbão, um dos mais importantes santos negros, adorado nas igrejas etíope e copta. Elesbão, uma figura histórica real, era originalmente conhecido como Kaleb, rei de Axum, reino que abrangia as atuais Etiópia e Eritreia, durante o século VI d.C.
Outros santos negros incluem Efigênia, uma lendária princesa etíope cuja história surgiu no século I d.C. Africanos escravizados e seus descendentes também cultuavam santos negros escravizados, como São Benedito de Palermo e Santo Antônio de Noto, cuja devoção apareceu na Sicília e depois na Península Ibérica durante o século XVI.
Os santos negros e as divindades africanas estão intimamente relacionados no Brasil. Quando africanos e seus descendentes participaram das confrarias católicas e abraçaram múltiplos santos negros, conectaram esses santos aos Orixás de suas terras natais. Nesse contexto, o catolicismo negro não teria se dissociado completamente das religiões africanas ocidentais, como o Vodun e o culto aos Orixás, que também abraçam múltiplas divindades.
Embora até meados do século XX a prática pública de religiões afro-brasileiras e artes marciais, como a capoeira, fossem frequentemente reprimidas pela polícia brasileira, as religiões da África Ocidental e Central permaneceram vivas no Brasil.
O legado religioso africano está vivo nas cerimônias de Candomblé e Umbanda. Com raízes na África Ocidental e Central, essas religiões afro-brasileiras também incorporam elementos do catolicismo e cosmologias dos povos originários. E esse legado não está escondido em templos privados. De norte a sul, milhões de brasileiros negros e brancos vestindo roupas brancas vão às praias no Ano Novo e no dia 2 de fevereiro para celebrar e fazer oferendas à Orixá do mar Iemanjá, conhecida no panteão iorubá como Yemọjá. Assim como na cerimônia de abertura do desfile do Ilê Aiyê, as religiões de matriz africana também estão presentes durante os desfiles de Carnaval, nos quais a duradoura herança africana do Brasil emerge de várias formas por meio da música e da dança.
A África também foi um tema central no Carnaval brasileiro. Já no século XIX, os grupos de Carnaval da Bahia incorporavam os termos “África” e “africanos” em seus nomes. Também abraçaram temas associados a uma variedade de tópicos africanos em seus desfiles anuais. Esses esforços para manter essas conexões com África continuaram ao longo do século XX, inclusive durante a ditadura civil-militar-empresarial que governou o país de 1964 a 1985.
O internacionalmente famoso bloco de Carnaval Ilê Aiyê, celebra cinco décadas de existência em 2024, sendo um grande exemplo do contínuo trabalho para trazer à luz o papel da África na formação do Brasil, um esforço liderado por artistas e ativistas negros.
Os blocos afro frequentemente promovem uma visão da África como um continente homogêneo e idealizado, caracterizado por roupas coloridas e danças ao som de tambores. No entanto, ao reivindicar a África em seus próprios termos, os ativistas negros brasileiros transformaram essa representação em uma ferramenta poderosa para afirmar sua luta contra o racismo no espaço público.
Cinquenta anos atrás, isso foi uma grande conquista, mesmo em um estado negro como a Bahia, onde a minoria branca da elite era hostil às demonstrações de negritude, como cabelo natural, dreadlocks, turbantes e roupas coloridas. Por meio de suas apresentações no Carnaval e muitas outras atividades educacionais, o Ilê Aiyê se tornou um marco na luta contra o racismo na Bahia.
Atores sociais e organizações negras brasileiras lutaram pela oficialização do papel da África e dos africanos na construção do país. Entendendo o tráfico atlântico de escravizados como uma atrocidade humana, eles relacionavam as duradouras desigualdades raciais do Brasil com sua dolorosa história de escravidão.
No final da ditadura, atores sociais e políticos afro-brasileiros intensificaram os esforços para implementar leis que reconhecessem oficialmente a história africana do Brasil. Em 1983, o falecido político negro Abdias do Nascimento apresentou ao Congresso Nacional um projeto de lei, para tornar o 20 de novembro um feriado nacional em comemoração ao Dia da Consciência Negra.
A data não era um dia qualquer — 20 de novembro é o dia da morte de Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares, a maior e mais duradoura comunidade de escravizados fugitivos, assassinado em 1695. O projeto de Nascimento não chegou nem ao plenário. Porém, em 1995, o tricentenário do assassinato de Zumbi foi amplamente comemorado em todo o país.
Nos anos seguintes, ativistas negros brasileiros militavam pela substituição da comemoração de 13 de maio, dia da assinatura da Lei Áurea, pelo 20 de novembro. Em 2003, a Lei Federal 10.639 tornou obrigatório nas escolas públicas e privadas de ensino básico e médio o ensino da história e cultura afro-brasileira, incluindo a história da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o papel dos negros na formação da nação, a fim de resgatar sua contribuição nas áreas social, econômica e política. A lei também estabeleceu o 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra no calendário escolar, e nos anos seguintes, a data se tornou feriado oficial em 400 cidades brasileiras.
Embora a legislação não tenha sido totalmente implementada, o Brasil, com sua maioria negra, está muito à frente de todos os outros países das Américas no reconhecimento oficial do papel dos africanos escravizados na formação da nação. Hoje, todo o mês de novembro é designado como Mês da Consciência Negra. Em dezembro de 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou uma lei estabelecendo o 20 de novembro como feriado nacional.
Sem dúvida, o Brasil começa a enfrentar sua dívida com o continente africano. No entanto, a taxa de pobreza entre negros brasileiros continua sendo o dobro da população branca. Apesar das iniciativas simbólicas, como o feriado federal de 20 de novembro, essas medidas permanecem largamente insuficientes para enfrentar as profundas desigualdades raciais do país.