Intervenções sombrias

Andreas Bohne
Fredson Guilengue
Priscilla Marques Campos

Todos sabem do envolvimento militar da União Europeia (EU) na África Ocidental, no Golfo da Guiné, no Sudão do Sul e na África Oriental. No entanto, uma missão no continente passou relativamente despercebida.

Members of the U.S. Army 3rd Special Forces Group (Airborne) and Commandos from the Mozambique Defense Armed Forces participates in the culminating exercise during a Joint Combined Exercise Training, near Moamba, Mozambique, August 30, 2024. U.S. Air Force photo by Tech. Sgt. Christopher Dyer CC0.

Enquanto ativistas, políticos e profissionais da mídia analisam missões militares fracassadas, em andamento e planejadas pela UE na África Ocidental, no Golfo da Guiné, no Sudão do Sul ou no Chifre da África, uma delas tem passado relativamente despercebida. Em 2021, a EU apraovou uma missão de treinamento em Moçambique. A “Missão de Treinamento da EU em Moçambique” (EUTM-Moçambique) tem como objetivo fortalecer o exército moçambicano, devido ao conflito crescente na província de Cabo Delgado, no norte de Moçambique, que ainda não foi pacificada. Recentemente, a EU concordou em estender e expandir essa missão, com efeito a partir de 1º de setembro de 2024.

É um conflito violento desconhecido pelo público global: em outubro de 2017, começaram os ataques de atores islâmicos às delegacias de polícia, que depois se espalharam. O conflito em Cabo Delgado é complexo e não oferece respostas simples, frequentemente sugeridas em termos de suas causas ou respostas. Existem numerosas causas interligadas. Por exemplo, a radicalização religiosa de parte da população muçulmana, que provavelmente começou no início dos anos 2000. Essa radicalização mistura-se com tensões e rivalidades locais, bem como com a negligência histórica. Tanto durante o domínio colonial português quanto após a independência de Moçambique, o norte permaneceu marginalizado e afastado do centro político no sul, cuja capital é Maputo. Apesar de sua localização periférica, Cabo Delgado tem ganhado destaque nos últimos anos devido aos negócios lucrativos, especialmente após a descoberta de depósitos de gás natural e a busca por sua exploração e lucro. Os temidos e reais impactos sobre a população local, como os deslocamentos já ocorridos, acompanhados por um sentimento renovado de marginalização, teria sido o terceiro fator que impulsou a violência. TotalEnergy (França), ExxonMobil (EUA) e ENI (Itália) já iniciaram ou planejam iniciar a perfuração de gás.

Em julho de 2021, a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC) lançou a Missão da SADC em Moçambique (SAMIM) para combater as forças islâmicas. Vários países enviaram soldados, mas nas últimas semanas os retiraram. Há diferentes pontos de vista sobre as razões dessa retirada. Algumas vozes citam o financiamento insuficiente, enquanto outras sugerem que a SAMIM estaria deixando o país porque cumpriu sua tarefa de repelir os insurgentes (o que, dado o aumento das atividades insurgentes desde janeiro, é questionável). No entanto, as tensões contínuas entre o governo moçambicano e a SADC são uma explicação mais plausível. Os chefes de Estado da SADC não concordaram com o envio de tropas ruandesas para Cabo Delgado. O regime autocrático de Paul Kagame tenta se posicionar como um mercenário estatal que vende segurança. A França provavelmente articulou-se com a Ruanda para proteger os investimentos da Total como parte de um acordo sub-imperialista. Entre outros, uma empresa de segurança ruandesa está envolvida na proteção das instalações da TotalEnergy e demais empresas de construção ruandesas estariam se beneficiando.

Além disso, Ruanda busca uma posição geopolítica mais significativa na África Oriental e Austral. Críticos suspeitam que Kagame queira desviar a atenção de seu envolvimento na guerra no leste do Congo. O país estaria de olho nos dissidentes ruandeses e precisa da boa vontade das autoridades moçambicanas. No final de fevereiro, o parlamento moçambicano ratificou um controverso acordo de extradição com Ruanda, o que gerou preocupações sobre a possível perseguição de dissidentes no exílio.

Largamente despercebido, há três anos — em julho de 2021 e outubro de 2021 — a UE decidiu e lançou uma missão de treinamento para Moçambique, originalmente destinada a durar dois anos. A Missão de Treinamento da EU em Moçambique (EUTM Moçambique) foi criada com o objetivo de treinar e apoiar as forças armadas moçambicanas no combate à violenta insurgência na província de Cabo Delgado, em particular, treinando unidades da ainda incipiente Força de Reação Rápida (QRF). A missão foi concebida sem mandato executivo, ou seja, a participação em conflitos armados era proibida. Nos meses seguintes, 40 milhões de euros suplementaram os 4 milhões de euros inicialmente fornecidos e, em abril de 2022, mais 45 milhões de euros foram acrescentados pelo Mecanismo Europeu de Apoio à Paz (EPF). Até agora, 11 companhias com mais de 1.700 militares foram treinadas. Além disso, por meio do EPF, a União Europeia tem apoiado as forças armadas moçambicanas na compra de equipamentos não letais para as unidades treinadas pela EUTM Moçambique.

A missão de treinamento incluiu uma ampla gama de países. Não surpreendentemente, Portugal e França assumiram um papel de liderança. Como missão da EU, os estados membros estão representados, mas a Sérvia — candidata à adesão à EU — e Cabo Verde, também estão presentes com soldados individuais.

No início deste ano, o governo moçambicano pediu à EU que prorrogasse a missão de treinamento. Segundo um relatório do “Canal de Moçambique”, a representação da EU no país hesitou em se comprometer rapidamente. Bem antes disso (em dezembro de 2021), o governo de Portugal — a antiga potência colonial local — declarou que a missão da UE deveria ser estendida. O Conselho da EU recentemente prorrogou o mandato da missão de treinamento até 30 de julho de 2026. A nova missão vai ser financiada com 14 milhões de euros. No entanto, a prorrogação é acompanhada por uma mudança de objetivos: em vez de se concentrar no ‘treinamento’, o foco agora é no ‘apoio‘. A retórica também refletiu essa mudança: a EUTM Moçambique passou a se chamar ‘Missão de Assistência Militar da EU à Moçambique’ (EUMAM Moçambique) a partir de setembro. Além de armas leves, Moçambique também queria materiais bélicos do lado europeu. Essa demanda, repetidamente feita e consistentemente recusada, foi apresentada em Bruxelas, em maio, pelo ministro da defesa moçambicano Cristóvão Chume, entre outros.

O engajamento em Moçambique esteve inserido no desenvolvimento da Política Comum de Segurança e Defesa da Europa (CSDP), que começou há alguns anos e vem sendo fortalecida pelo ‘Bússola Estratégica’ da UE de 2022. Isso incluiu, em particular, o Mecanismo Europeu de Apoio à Paz (EPF) como o novo instrumento de financiamento que cobre todas as medidas de política externa da EU com uma dimensão militar ou de defesa, como parte da PCSD. Segundo o Tratado da EU, não é permitido financiar medidas militares com o orçamento da UE. Para contornar essa proibição, foi criado um orçamento para financiamento militar fora do orçamento da EU, com uma dotação de 17 bilhões de euros para o período de 2021-2027 (principalmente para apoiar a Ucrânia).

Com o EPF, a EU busca maior flexibilidade, que permitirá contornar a União Africana e financiar diretamente iniciativas militares nacionais e sub-regionais. O Alto Representante da EU para os Negócios Estrangeiros, Josep Borrell, afirmou que o EPF tornaria a EU uma ‘provedora de segurança ainda mais eficaz em todo o mundo’. A missão em Moçambique foi um dos primeiros sinais visíveis dessa mudança e foi apenas a terceira medida de apoio adotada pelo Conselho desde a criação do EPF.

Além disso, a EU pretende usar o EPF para facilitar entregas de armas para regiões de crise e financiar diretamente o treinamento e equipamento dos exércitos nacionais. De acordo com o Grupo de Crise Internacional e outras organizações, isso pode agravar a situação tensa em estados frágeis. Embora os pedidos do governo moçambicano para entregas de armas tenham sido rejeitados até agora, seu parceiro e ator preferido, Ruanda, tem se beneficiado da EU. Não só a missão de treinamento da EU está sob o Mecanismo, como também um precedente foi estabelecido em outro caso. Em 2022, um exército recebeu apoio financeiro direto de 20 milhões de euros pela primeira vez sob o Mecanismo. Segundo um relatório da Bloomberg, a EU está considerando aumentar significativamente o apoio, mas isso foi rejeitado por enquanto. A SAMIM também foi apoiada com quase 17 milhões de euros para equipamentos como fortificações de acampamentos e veículos.

Até agora, falta uma avaliação crítica do sucesso atual da missão de treinamento e do efeito que o treinamento está tendo sobre as Forças de Reação Rápida. As histórias de sucesso esperadas pela EU no final da EUTM focaram na quantidade, ou seja, nos soldados treinados, em vez da qualidade. De acordo com o relatório do Grupo de Crise Internacional, as autoridades moçambicanas não estão concedendo aos treinadores militares da EU acesso à região. E, de modo geral, a ameaça militante permanece alta em Cabo Delgado.

Outra dimensão geopolítica pode tornar a missão da EU ainda mais interessante. Até agora, a China só forneceu armas à Moçambique. Agora, o presidente moçambicano Filipe Nyusi anunciou que a China pode apoiar o treinamento do pessoal militar moçambicano.

Certamente, e sem dúvida, a proteção da população –– inclusive por meio do fortalecimento das forças armadas moçambicanas –– é indispensável. No entanto, a missão da EU dá a impressão de que há uma primazia política militar sobre os civis (estes últimos seriam caracterizados por uma recém-estabelecida resolução civil de conflitos). Esse conflito nunca será efetivamente resolvido a menos que seja aberto um canal para o diálogo, com o papel da comunidade local em destaque. Iniciativas locais já produziram resultados, como o grupo que libertou cerca de 60 pescadores que passaram três dias com eles após terem sido sequestrados em agosto.

Além disso, medidas socioeconômicas além de ‘projetos de desenvolvimento’ devem ser tomadas. Dessa forma, a EU também estaria negando tanto as causas sociais quanto as econômicas da guerra em Cabo Delgado, forçando a marginalização das comunidades e apoiando a posição controversa do exército e das forças de segurança, assim como da elite moçambicana. Não está claro como a ‘imposição da paz’, ou seja, a criação da paz por meio da violência, se tornará ‘manutenção da paz’. Portanto, mesmo que não esteja diretamente envolvida, a EU está se tornando parte da crescente militarização.

No entanto, a avaliação não deve parar por aí: a missão da EU deve ser categorizada em um triângulo de ‘segurança, proteção de investimentos e acesso a recursos’, mesmo que isso não seja explicitamente mencionado. Enquanto a retórica da diplomacia da EU tende a enfatizar uma postura defensiva europeia, as missões sugerem um caráter muito mais ofensivo. Trata-se da defesa militar de um projeto extrativista e de seus investimentos anteriores, bem como da segurança europeia no fornecimento de gás.

About the Author

Andreas Bohne works as a freelance journalist in Berlin.

Fredson Guilengue is Senior Programme Manager at the South Africa office of the Rosa Luxemburg Foundation in Johannesburg.

About the Translator

Priscilla Marques Campos is a Brazilian master of African social history. She is chief editor of Hydra Journal and enconto orí Review.

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