A crise dos libertadores Africanos

À medida que Moçambique se aproxima dos 50 anos de independência, seu partido no poder se agarra ao poder em meio à turbulência política, eleições contestadas e crescente descontentamento público. Será este o início de uma nova luta pela libertação?

Manifestação popular em avenida movimentada da zona central da capital do país, com entoação do hino nacional e agitação de bandeiras. Maputo, 22 de Novembro de 2024. Foto © Marílio Wane.

Às vésperas de celebrar os 50 anos de independência conquistada em 25 de junho de 1975, Moçambique passa por uma crise política e de direitos humanos sem precedentes na sua jovem trajetória como nação. A efeméride traz uma carga simbólica ainda maior devido à coincidência temporal com as outras ex-colônias portuguesas em África—Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau (tornada independente em 1973) e São Tomé e Príncipe—uma vez que os processos históricos de libertação decorreram de forma paralela e articulada, diante da luta contra um inimigo comum. Daí que tal sincronicidade vem suscitar todo um conjunto de reflexões sobre aquilo que tem sido a sua experiência vivida ao longo destas cinco décadas. Objetivamente, a avaliação não poderá ser das melhores, visto que estes países pertencem ao grupo das nações mais empobrecidas do mundo, como mostram diversos indicadores sociais e económicos. Além disso, o momento coincide com agudas crises políticas marcadas pelo cansaço da população com as vicissitudes dos regimes vigentes, especialmente em Moçambique, cujo caso é paradigmático da crise de uma problemática ainda maior ao nível do continente. 

Na esteira das grandes transformações geopolíticas que se verificam nos principais centros de poder global, observam-se também, no continente africano, movimentações políticas cujo denominador comum reside na contestação dos regimes instalados após as independências. Trata-se do que muitos caracterizam como lutas por uma espécie de “segunda independência”, no sentido de que os movimentos de libertação do jugo colonial europeu, desencadeados a partir das décadas de 1950, 1960 e 1970, desvirtuaram-se ao longo do tempo, degenerando em regimes opressores e autoritários. Daí decorre uma crise de representatividade, baseada na percepção, bastante difundida, de que as elites políticas africanas sequestraram os seus respetivos aparelhos de estado para a satisfação de interesses privados e, concomitantemente, para a sua manutenção no poder. Ainda mais agravante é a ideia de que tais elites aliaram-se aos seus antigos colonizadores europeus, bem como a outros players estrangeiros, tornando-se a contraparte local de uma lógica de dominação neocolonialista. 

Certamente, o exemplo mais eloquente deste fenómeno seja o caso de Mali, Níger e Burkina Faso, que recentemente fundaram a Aliança dos Estados do Sahel, como pacto de defesa mútua entre estes países. Como pano de fundo, trata-se de uma ação coordenada com o objetivo manifesto de eliminar a influência francesa resultante do colonialismo na região e anteriormente viabilizada pelas elites políticas locais, depostas por golpes militares. Neste sentido, foram tomadas ações concretas como a expulsão de bases militares francesas (e até mesmo embaixadas, em alguns casos) e a reversão dos dividendos da exploração de recursos minerais para os respetivos tesouros nacionais. Ainda mais emblemática dos propósitos deste movimento foi a sua decisão unilateral de abandonar a CEDEAO, o bloco de cooperação regional, sob a acusação de que esta seria uma organização manipulada pelo Ocidente, sob a liderança da Nigéria. 

Enfim, em diversos países e regiões do continente, surgem movimentos de contestação do status quo caracterizados por demandas de emancipação, participação e maior inclusão social. Cada qual à sua maneira, estes movimentos expressam novas correlações de forças resultantes das suas dinâmicas sociais internas e regionais, em interação com as transformações geopolíticas mais abrangentes. Como resultado, o seu sucesso ou fracasso dependerá de fatores como a solidez das instituições, o grau de organização da sociedade civil e, sobretudo, da natureza da reação dos regimes vigentes em relação a todo um conjunto de situações relativamente inéditas em países africanos desde as suas independências. Vejamos, então, como o caso da atual crise política em Moçambique se enquadra neste contexto.

De eleições controversas a um “governo paralelo”

Desde a divulgação dos resultados das eleições gerais de 9 de Outubro último, uma onda de manifestações e protestos civis tomaram conta do país, em contestação ao que se considera como uma fraude eleitoral a favor do partido Frelimo, no poder desde a independência. No dia 24 de Outubro, os órgãos eleitorais deram a vitória a Daniel Chapo, o candidato da situação, com 70.61% dos votos, contra 20,37% do segundo colocado, Venâncio Mondlane, apoiado pelo recém-criado partido Podemos. Entretanto, o processo eleitoral foi marcado por um inúmeras denúncias de irregularidades, desde o processo de recenseamento e, mais ainda, durante a votação propriamente dita. Na realidade, desde as primeiras eleições multipartidárias de 1994, as acusações de fraude tem sido recorrentes e fartamente documentadas, tendo como fator determinante o fato de a Frelimo deter controle quase que absoluto sobre as instituições do Estado, incluindo os próprios órgãos eleitorais e judiciários. Ocorre que desta vez, devido ao grande volume de denúncias, a contestação não partiu apenas da oposição, mas também de diversos setores da sociedade civil e até mesmo da comunidade internacional (especialmente, da União Europeia).

Fato é que, após a divulgação oficial dos resultados, o principal candidato da oposição convocou a população a se manifestar em protesto, obtendo grande adesão à sua causa, sobretudo por conta da notória insatisfação popular com a crescente deterioração das condições de vida no país.Ainda no contexto eleitoral, os níveis de indignação foram agravados por conta do assassinato brutal de Elvino Dias e Paulo Guambe, ativistas do partido Podemos, ocorrido em circunstâncias ainda não esclarecidas. Sobre este pano de fundo e tendo sido dura e desproporcionalmente reprimidas pelas autoridades, as manifestações subiram de tom, passando de marchas pelas ruas para ações mais drásticas em diversos pontos do país. De modo que, nos últimos dois meses, o país tem assistido a episódios de uma verdadeira revolta popular e desobediência civil, como interrupção das vias de acesso, das atividades nos portos e aeroportos, fronteiras, destruição de infraestruturas (especialmente esquadras de polícia e sedes do partido no poder), deixando o país numa situação de anomia, beirando a ingovernabilidade.   

O pico de tensão foi atingido na última semana do ano de 2024 após a validação, pelo Conselho Constitucional, dos resultados eleitorais largamente contestados a vários níveis. Durante esta fase das manifestações, para além da intensificação dos atos de revolta popular, observou-se intensa repressão policial, resultando em denúncias das autoridades de segurança por parte de organizações da sociedade civil, junto a organismos internacionais, sob alegação de violação grave de direitos humanos e crimes contra a Humanidade. Iniciado o ano de 2025, já com a esperada confirmação da vitória da Frelimo, a cerimónia de posse de novo presidente foi também marcada por fortes protestos populares e repressão policial desproporcional, resultando em prisões e até mesmo, óbitos. Tais ocorrências registradas na cerimónia oficial de investidura presidencial marcaram negativamente o ato, sobretudo pela inédita falta de participação popular, isolada e reprimida por alegadas razões de segurança. 

Do ponto de vista simbólico, a cerimónia da tomada de posse foi a própria imagem da notória desconexão do partido outrora libertador com a sociedade moçambicana. Situação ainda mais reforçada pelo contraste em relação ao regresso triunfal de Venâncio Mondlane ao país, na semana anterior, tendo sido recebido por aclamação popular pelas ruas da capital do país. Desde Outubro, Mondlane havia se autoexilado, alegadamente por motivos de segurança, na sequência dos protestos contra os resultados eleitorais que começava, então, a liderar. Foi a partir do seu exílio que o candidato oficialmente derrotado convocou e organizou as manifestações, que incluiu ações como paralisação do trabalho e, especialmente, o não pagamento de tarifas rodoviárias, entre outras. Muitas destas situações redundaram em violência e tensões diversas, gerando um ambiente de confusão generalizada cuja responsabilidade foi mutuamente atribuída a ambas as partes, em tom acusatório. Controvérsias à parte, fato é que as manifestações convocadas pela oposição obtiveram massivo apoio popular, em visível contraste com a autoridade oficialmente instituída do regime. 

Aproveitando tal contexto de vácuo de popularidade do presidente empossado, Mondlane autoproclamou-se Presidente da República, através das redes sociais, a partir de onde faz o seu trabalho de mobilização, preferencialmente. Tal estratégia de comunicação tem sido um dos principais fatores desta adesão popular, especialmente entre a imensa camada jovem da população, assolada com baixas expectativas de futuro resultantes da sua exposição ao desemprego, à pobreza absoluta e à violência. Efetivamente, tal como tem afirmado diversos analistas sociais moçambicanos, estas são as causas fundamentais do descontentamento popular, sendo que a crise eleitoral surge como a ponta do iceberg de problemáticas mais profundas. Neste sentido, diversos setores da sociedade tem apelado à iniciativa de se promover um diálogo inclusivo por parte do novo governo com a principal força de oposição, o que não tem ocorrido, adiando-se assim, as possibilidades de solução para a crise. 

Tem sido justamente através das redes sociais que Mondlane “instituiu” uma espécie de governo paralelo, editando “decretos presidenciais” baseado em pautas largamente apoiadas por boa parte da população. E, por outro lado, contrariando as decisões e políticas do governo. Desta situação de ambiguidade, tem resultado diversos episódios de uma tensão social que se prevê agudizar ao logo dos próximos tempos, sem perspetivas de redução e com alto risco de descontrole e violência crescente, como já se tem observado. De acordo com dados publicados pela Plataforma Eleitoral Decide (organização da sociedade civil que tem monitorado os últimos processos eleitorais), desde o início das manifestações em outubro, foram registrados 353 óbitos, sendo que a maioria, 91% do total, corresponde a disparos letais efetuados pela polícia. Ainda segundo esta organização, caso se mantenha esta situação de “dois governos”, a tendência é de aumento da inquietação social, levando ao aumento de mortes e confrontos violentos. 

Problemas e soluções na vizinhança

Tal como se apresenta, o ambiente de incerteza que se vive em Moçambique é significativamente paradigmático do contexto contemporâneo de contestação a regimes políticos consolidados há décadas, após a alvorada das independências africanas. A nível regional, é bastante sintomático o pronto apoio prestado pelos aliados históricos mais próximos da Frelimo, como o ANC (Africa do Sul), MPLA (Angola), ZANU-PF (Zimbabwe) e Chama Cha Mapinduzi (Tanzânia), que reconheceram a vitória eleitoral dos seus “camaradas” antes mesmo da validação final oficial. Não por acaso, alguns destes países enfrentam problemas semelhantes a nível doméstico: nas eleições realizadas no ano passado, o histórico ANC de Nelson Mandela foi compelido a formar um governo de “unidade nacional” como o DA (Aliança Democrática), o partido que representa o segmento branco da população; tal situação decorre da impopularidade crescente do partido que lutou contra o apartheid e que governa o país desde 1994. Já em Angola, há uma enorme preocupação por parte do regime pelo potencial efeito de contaminação que a situação de Moçambique pode gerar localmente, dado o paralelismo dos processos históricos dos dois países. 

Como contraponto, ainda neste contexto e no auge da crise pós-eleitoral moçambicana, o Botswana realizou eleições que puseram fim a 58 anos de domínio do partido BDP, no poder desde a sua independência, conquistada em 1966. Este caso chamou a atenção justamente por ser um ponto fora da curva, em que a transição se deu de forma tranquila, o que talvez reflita o fato de ser apontado como um dos países mais prósperos de África, vindo a registrar taxas positivas de crescimento económico e boas posições no ranking de IDH, para os padrões do continente. A despeito de se tratar de um país de pouca relevância estratégica na região, o exemplo do Botswana traz lições importantes para os seus vizinhos, sobretudo do ponto de vista da estabilidade política o do desenvolvimento socioeconómico. 

Enfim, para Moçambique e os seus congéneres dos PALOP—Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa—que os 50 anos de independência sirvam de momento de reflexão que tragam elementos úteis para a superação das difíceis condições de vida a que estão submetidas a esmagadora maioria dos seus habitantes. Especialmente para os casos de Moçambique e Angola, em que os sistemas de partido único praticamente sobreviveram à instauração de uma democracia liberal, resultando numa espécie de “multipartidarismo sem democracia”, em que persistiu o controle quase que absoluto sobre todas as instituições e esferas da vida pública. Como sugere o caso moçambicano, a excessiva concentração de poder por parte dos partidos-movimentos de libertação, ancorada na legitimidade adquirida por conta da luta anticolonial, pode se transformar ela própria no principal fator de instabilidade, tornando-se automaticamente num obstáculo ao desenvolvimento do país. De modo que os diversos movimentos de contestação que se observam um pouco por todo o continente apontam para soluções internas, sob a forma do fortalecimento da sociedade civil e de mecanismos que visam maior inclusão dos diversos atores e setores da sociedade nos processos de decisão. De resto, só assim todos poderão participar verdadeiramente das celebrações dos 50 anos da independência.

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