Sem justiça e sem paz em Moçambique

Ruth Castel-Branco
Priscilla Marques Campos

Há dez anos, seria difícil imaginar esse tipo de movimento que vem ocorrendo nas últimas semanas em Moçambique.

Protesta em Maputo, Maio 2024. © Ivan Bruno de M via Shutterstock.

Em 9 de outubro, os moçambicanos votaram nas eleições gerais. Após uma fraude generalizada nas eleições municipais do ano passado, muitos acreditavam que o resultado já estava definido. O partido governante manipularia os resultados, a oposição capitularia, e a Frelimo daria início ao seu sexto decênio no poder. De fato, a eleição foi marcada por irregularidades: desde eleitores fantasmas até observadores falsos, preenchimento de urnas e contagem fictícia. Em protesto, o partido de oposição Podemos convocou uma paralisação geral. Então, dois de seus líderes foram brutalmente assassinados, desencadeando uma onda de protestos sem precedentes pelo país. Como observou o jornalista Tomás Vieira Mário, embora a Frelimo tenha vencido as eleições, o povo perdeu.

De acordo com a Comissão Nacional de Eleições, a Frelimo obteve 71% dos votos, assegurando 195 assentos no parlamento. O Podemos substituiu a Renamo como o principal partido de oposição com 31 cadeiras, enquanto Renamo e MDM viram suas participações caírem de 20 para 4 assentos, respectivamente. Os resultados foram amplamente contestados, inclusive por membros minoritários da Comissão Nacional de Eleições. Mas, como aponta o Centro de Integridade Pública, a comissão eleitoral de Moçambique é estruturalmente manipulada. Embora os votos sejam contados nas mesas eleitorais, sob o olhar atento de membros dos partidos e observadores independentes, a tabulação dos resultados é feita de portas fechadas. Como os membros da Comissão Nacional de Eleições são nomeados pelo parlamento com base na representação partidária, a Frelimo, partido governante, detém um poder desproporcional para influenciar o resultado eleitoral final.

Momentos antes de seu assassinato, o advogado de oposição Elvino Dias estava preparando uma contestação dos resultados eleitorais em nome do candidato presidencial do Podemos, Venâncio Mondlane. Dias era advogado, com grande expressão na área. Nas primeiras horas de 19 de outubro, seu carro foi alvejado com 25 tiros por um esquadrão da morte (não identificado). Além de Dias, mataram um dos principais líderes do Podemos, Paulo Guambe, e feriram a vendedora Adácia Macuácuá. O porta-voz da polícia atribuiu o assassinato a uma disputa conjugal e recomendou que as figuras políticas a evitarem áreas com alta criminalidade. Entretanto, apenas algumas horas antes de seu assassinato, Dias havia previsto seu destino, anunciando em uma transmissão ao vivo pelo Facebook que possuía cópias das tabulações originais dos votos e alertando o partido governante para não prejudicar Venâncio Mondlane. “Quanto a nós”, disse ele, resignado. “Já morremos há muito tempo. Os vândalos sabem onde moro, por isso não tenho motivo para fugir.”

O assassinato de Dias e Guambe foi recebido com choque coletivo, mobilizando o apoio popular ao Podemos e a Venâncio Mondlane. O Partido Otimista pelo Desenvolvimento de Moçambique (Podemos, ou “sim, nós podemos”) surgiu no cenário político em 2019. Fundado por membros dissidentes da Frelimo, seu objetivo era promover uma espécie de “socialismo liberal” baseado na democracia, boa governança e justiça social e econômica. O primeiro candidato presidencial do partido foi o produtor musical Hélder Mendonça, neto do herói da libertação Francisco Manyanga. No entanto, o Conselho Constitucional desqualificou Mendonça, assim como a falecida advogada de direitos humanos Alice Mabote, da Coalizão Aliança Democrática. Às vésperas das eleições gerais deste ano, o Podemos era um partido sem representante até então e encontrou em Venâncio Mondlane uma articulação possível, visto que ele não tinha partido declarado.

Venâncio Mondlane é um líder carismático que conseguiu surfar na onda de indignação juvenil, capturando os corações e mentes das gerações marginalizadas. Pregador do evangelho da prosperidade, com ligações ao televangelista nigeriano Joshua Iginla, Venâncio Mondlane acredita que foi predestinado por Deus para liderar o país. Em 2013, lançou sua carreira política pelo MDM, depois saltou para a Renamo, para a Coalizão Aliança Democrática e, atualmente, para o Podemos. Em seus sermões online, prega sobre tirania e corrupção, desenvolvimento e prosperidade, paz e unidade. Mas ele tem uma afinidade por populistas autoritários, tendo se reunido com a extrema-direita europeia, prestado homenagem ao Jair Bolsonaro (ex-presidente de extrema direita no Brasil) e elogiado Trump por proteger os valores morais dos Estados Unidos. E, por meio do uso habilidoso das redes sociais, ele conseguiu desestabilizar a cena política e construir uma outra via.

Em resposta aos resultados eleitorais, Venâncio Mondlane convocou uma greve geral em quatro fases para libertar Moçambique. Centenas de milhares de pessoas pelo país e na diáspora aderiram ao chamado, adotando uma diversidade de táticas—incluindo bater panelas, marchar para locais simbólicos, bloquear artérias logísticas e destruir símbolos do poder estatal—para expressar seu descontentamento. Mas as comunidades pagaram um alto preço, com a truculência da polícia fortemente armada lançando gás lacrimogêneo em residências e munição real nas multidões. Embora não haja estatísticas conclusivas, a Human Rights Watch estima que milhares de pessoas foram presas, centenas foram baleadas e pelo menos trinta foram mortas apenas na última semana. Enquanto isso, a Confederação das Associações Econômicas de Moçambique estima que a greve geral custou até 2% do PIB.

Até agora, a Frelimo tem se mostrado irredutível. Após o anúncio dos resultados oficiais, o Presidente Nyusi cantou alegremente: “Chapo Presidente, doa a quem doer.” A portas fechadas, entretanto, muitos membros da Frelimo admitiram que é improvável que tenham vencido por esmagadora maioria. Afinal, as eleições ocorreram em um momento turbulento, marcado pela pobreza e desigualdade crescentes, uma crise da dívida pública e uma insurgência jihadista em Cabo Delgado. Se apenas o partido tivesse moderado a fraude, ponderam alguns membros, os resultados teriam sido mais plausíveis. Mas a combinação de “fraude de cima”, pelos líderes partidários ávidos por garantir uma maioria parlamentar e encher os cofres do partido, e “fraude de baixo” pelos deputados partidários ansiosos para manter seus cargos no parlamento, deslegitimou o processo eleitoral e reforçou a crença de que a mudança de regime só pode ocorrer pela força.

Enquanto Venâncio Mondlane se prepara para a quarta fase da greve geral, todos os olhos estão voltados para o Conselho Constitucional, que deverá fazer um pronunciamento final sobre os resultados das eleições. Sob pressão de organizações da sociedade civil, o Presidente do Conselho Constitucional ordenou que a Comissão Nacional de Eleições entregue as tabulações originais e atas das mesas eleitorais contestadas. No entanto, dada a extensão das irregularidades nas mesas—incluindo a destruição e o descarte das tabulações originais—será necessário um exercício forense para extrair os resultados autênticos. Mesmo que o Conselho Constitucional consiga fazê-lo, uma vitória de Venâncio Mondlane não é garantida. Dada a alta taxa de abstenção—particularmente nas províncias do Norte, Nampula e Cabo Delgado—a Frelimo pode muito bem vencer sem legitimidade para governar.

Em última análise, um movimento político progressista nunca foi tão urgente. No entanto, não está nitido se o casamento de (in)conveniência entre o Podemos e Venâncio Mondlane será capaz de cumprir essa promessa (de fato, os primeiros sinais sugerem que a relação pode estar se desfazendo). Como muitos líderes evangélicos, as visões teológicas de Venâncio Mondlane estão profundamente entrelaçadas com uma agenda econômica neoliberal, que enfatiza a acumulação individual e a prosperidade material em detrimento da redistribuição. Embora o Podemos tenha raízes “socialistas”, não possui a coerência política nem o poder organizacional para influenciar a base política de Venâncio Mondlane. No entanto, as trajetórias de luta dificilmente são lineares ou predeterminadas. Há uma década, os tipos de protestos vistos nas últimas semanas seriam difíceis de imaginar. As vozes de oposição eram poucas e dispersas, e tudo o que o regime da Frelimo precisava fazer era perseguir alguns desafortunados para restaurar a ordem. Hoje, as vozes de oposição são muitas e diversas demais para serem silenciadas. E ficou cada vez mais óbvio que, se não houver justiça, não haverá paz.

About the Author

Ruth Castel-Branco is a senior researcher at the Southern Centre for Inequality Studies, University of the Witwatersrand.

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Priscilla Marques Campos is a Brazilian master of African social history. She is chief editor of Hydra Journal and enconto orí Review.

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