Seria a guerra em Gaza um genocídio?

Amos Goldberg
Priscilla Marques Campos

Da Namíbia até a Armênia, e de Ruanda à Bósnia, os perpetradores de assassinato em massa afirmam estar agindo em legítima defesa.

Gaza, 2009. Crédito da imagen Marius Arnesen via Flickr CC BY-SA 3.0 NO Deed.

Sim, é genocídio. É tão difícil e doloroso admitir, mas apesar de todos os nossos esforços para pensar de outra forma, após seis meses de guerra brutal, não podemos mais evitar essa conclusão. A história judaica será daqui em diante manchada com a marca de Caim pelo “crime mais horrível”, que não pode ser apagado de suas linhas. Como tal, é assim que será visto no julgamento da história para as gerações futuras.

Do ponto de vista legal, ainda não se pode dizer o que o Tribunal Internacional de Justiça em Haia irá decidir, embora o que foi divulgado de suas decisões até o momento, à luz do aumento da prevalência de relatórios por juristas, organizações internacionais e jornalistas investigativos, a possível trajetória do julgamento parece bastante nítida.

Em 26 de janeiro de 2024, o Tribunal decidiu esmagadoramente (14-2) que Israel pode estar cometendo genocídio em Gaza. Em 28 de março, após a deliberada inanição da população de Gaza por Israel, o Tribunal emitiu ordens adicionais (desta vez por votação de 15-1, sendo a única discordância do juiz israelense Aharon Barak) pedindo a Israel que não negue aos palestinos seus direitos garantidos pela Convenção de Genocídio.

O relatório bem argumentado e bem fundamentado do relator especial da ONU, sobre a situação dos direitos humanos nos territórios palestinos ocupados, Francesca Albanese, chegou a uma conclusão ligeiramente mais determinada e é mais uma camada na compreensão de que Israel está de fato cometendo genocídio. O relatório detalhado e periodicamente atualizado do acadêmico israelense Dr. Lee Mordechai (que coleta informações sobre o nível de violência israelense em Gaza), chegou à mesma conclusão. Acadêmicos proeminentes como Jeffrey Sachs, professor de economia da Universidade Columbia (que é judeu e possui uma postura calorosa em relação ao sionismo tradicional), com quem chefes de estado de todo o mundo consultam regularmente sobre questões internacionais, falam do genocídio israelense como algo dado como certo.

Excelentes relatórios investigativos, como os de Yuval Abraham em Local Call, e especialmente sua recente investigação dos sistemas de inteligência artificial usados pelo exército na seleção de alvos e execução dos assassinatos, aprofundam ainda mais essa acusação. O fato de o exército permitir, por exemplo, a morte de 300 pessoas inocentes e a destruição de um bairro residencial inteiro para eliminar um comandante de brigada do Hamas, mostra que os alvos militares são quase incidentais para matar civis e que toda pessoa palestina em Gaza é um alvo para ser morta. Esta é a lógica do genocídio.

Sim, eu sei, todos são antissemitas ou judeus auto-odiadores. Apenas nós, israelenses, cujas mentes são alimentadas pelos anúncios do porta-voz das IDF (Forças de Defesa de Israel) e expostas apenas às imagens selecionadas para nós pela mídia israelense, vemos a realidade como ela é. Como se não tivesse sido escrita uma literatura interminável sobre os mecanismos de negação social e cultural de sociedades que cometem crimes de guerra graves. Israel é realmente um caso paradigmático, um caso que ainda será ensinado em todos os seminários universitários do mundo que tratam do assunto.

Levará vários anos antes que o Tribunal de Haia emita sua sentença, mas não devemos olhar para a situação catastrófica puramente através de lentes legais. O que está acontecendo em Gaza é genocídio porque o nível e o ritmo de matança indiscriminada, destruição, expulsões em massa, deslocamentos, fome, execuções, a eliminação de instituições culturais e religiosas, o esmagamento de elites, o assassinato de jornalistas e a desumanização abrangente dos palestinos; criam uma imagem geral de genocídio, de um esmagamento deliberado e consciente da existência palestina em Gaza. 

Da maneira como normalmente entendemos tais conceitos, a Gaza palestina como um complexo geográfico-político-cultural-humano não existe mais. Genocídio é a aniquilação deliberada de um coletivo ou parte dele – não de todos os seus indivíduos. E é isso que está acontecendo em Gaza. O resultado é indubitavelmente – genocídio. As inúmeras declarações de extermínio por altos funcionários do governo israelense e o tom geral exterminador do discurso público, corretamente apontado pela colunista do Haaretz, Carolina Landsman, indicam que esta também foi a intenção.

Os israelenses pensam erroneamente que um genocídio, para ser visto como tal, precisa se parecer com o Holocausto. Eles imaginam trens, câmaras de gás, crematórios, covas de morte, campos de concentração e extermínio; e a perseguição sistemática até a morte de todos os membros do grupo de vítimas, até o último. Um acontecimento como este de fato não ocorreu em Gaza. De forma semelhante ao que aconteceu no Holocausto, a maioria dos israelenses também imagina que o coletivo da vítima não está envolvido em atividade violenta ou conflito real, e que os assassinos os exterminam por causa de uma ideologia insana e sem sentido. Isso também não é o caso de Gaza.

O brutal ataque do Hamas em 7 de outubro de 2023, foi um crime hediondo e terrível. Cerca de 1.200 pessoas foram mortas ou assassinadas, incluindo mais de 850 civis israelenses (e estrangeiros), com muitas crianças e idosos. Cerca de 240 israelenses foram sequestrados para Gaza e atrocidades como estupro foram cometidas. Este é um evento com efeitos traumáticos profundos, catastróficos e duradouros por muitos anos, certamente para as vítimas diretas e seu círculo imediato, mas também para a sociedade israelense como um todo. O ataque forçou Israel a responder em legítima defesa.

No entanto, embora cada situação de genocídio tenha um caráter diferente, no escopo e nas características do assassinato, o denominador comum da maioria deles é que são realizados a partir de um autêntico suposto sentido de autodefesa. Legalmente, um evento não pode ser tanto autodefesa quanto genocídio. Essas duas categorias legais são mutuamente exclusivas. Mas historicamente, a autodefesa não é incompatível com o genocídio – geralmente é uma das principais causas, senão a principal.

Em Srebrenica (na atual Bósnia e Herzegovina), onde o Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia determinou em dois níveis diferentes que um genocídio tinha acontecido em julho de 1995 – “apenas” cerca de 8.000 homens e jovens muçulmanos bósnios, com mais de 16 anos, foram assassinados. As mulheres e crianças foram expulsas anteriormente.

As forças sérvias bósnias foram responsáveis pelo assassinato, sua ofensiva ocorreu em meio a uma sangrenta guerra civil, durante a qual ambos os lados cometeram crimes de guerra (embora imensuravelmente mais pelos sérvios) e que eclodiu após uma decisão unilateral dos croatas e muçulmanos bósnios de se separarem da Iugoslávia e estabelecerem um estado bósnio independente (no qual os sérvios eram minoria). 

Os sérvios bósnios, com sombrias memórias do passado de perseguição e assassinato da Segunda Guerra Mundial, se sentiram ameaçados. A complexidade do conflito, no qual nenhum lado era inocente, não impediu o Tribunal Internacional de Crimes de Guerra de reconhecer o massacre de Srebrenica como um ato de genocídio, que excedeu os outros crimes de guerra cometidos pelas partes, já que esses crimes não podem justificar o genocídio. O Tribunal explicou que as forças sérvias destruíram intencionalmente – através de assassinatos, expulsões e destruição – a existência muçulmana bósnia em Srebrenica. Hoje, por sinal, os muçulmanos bósnios vivem lá novamente, e algumas das mesquitas que foram destruídas foram reinstaladas. Mas o genocídio continua a assombrar os descendentes de assassinos e as vítimas.

O caso de Ruanda foi totalmente diferente. Lá, por muito tempo, como parte da estrutura de controle colonial belga baseada na divisão e governação, a minoria Tutsi governava, e oprimia a maioria Hutu. No entanto, na década de 1960, a situação se reverteu, e após a independência da Bélgica em 1962, os Hutu assumiram o controle do país e adotaram uma política opressiva e discriminatória contra os Tutsi, desta vez com o apoio das antigas potências coloniais. 

Gradualmente, essa política se tornou intolerável, e uma brutal e sangrenta guerra civil eclodiu em 1990, começando com a invasão de um exército Tutsi, o Frente Patriótica de Ruanda, composto principalmente por Tutsi que fugiram de Ruanda após a queda do domínio colonial. Como resultado, aos olhos do regime Hutu, os Tutsi foram identificados coletivamente com um inimigo militar real.

Durante a guerra, ambos os lados cometeram crimes graves em solo ruandês, bem como em solo dos países vizinhos para onde a guerra se espalhou. Nem um lado era absolutamente inocente ou absolutamente mal. A guerra civil terminou com os Acordos de Arusha, assinados em 1993, que indicavam envolver o povo Tutsi nas instituições governamentais, no exército e nas estruturas estatais.

Mas esses acordos fracassaram e, em abril de 1994, um avião que transportava o presidente Hutu de Ruanda, Juvénal Habyarimana, foi abatido. Até hoje, não se sabe quem derrubou o avião, e acredita-se que tenham sido, de fato, lutadores Hutus. No entanto, os Hutus estavam convencidos de que o crime havia sido cometido por combatentes da resistência Tutsi, e isso foi percebido como uma ameaça genuína ao país. O genocídio Tutsi estava a caminho. A justificativa oficial para o ato de genocídio era a necessidade de remover a ameaça existencial Tutsi de uma vez por todas.

O caso dos Rohingya, que a administração Biden reconheceu recentemente como genocídio, é muito diferente também. Inicialmente, após Mianmar (antiga Birmânia) conquistar a independência em 1948, os Rohingya muçulmanos eram vistos como cidadãos iguais e parte da entidade nacional, predominantemente budista. Mas ao longo dos anos, e especialmente após o estabelecimento da ditadura militar em 1962, o nacionalismo birmanês foi identificado com vários grupos étnicos dominantes (que eram principalmente budistas), excluindo os Rohingya.

Em 1982 e adiante, leis de cidadania foram promulgadas, privando a maioria dos Rohingya de sua cidadania e seus direitos políticos. Eles eram vistos como estrangeiros e como uma ameaça à existência do estado. Os Rohingya, entre os quais tiveram pequenos grupos rebeldes no passado, fizeram um esforço para não serem arrastados para a resistência violenta. No entanto, até 2016, muitos sentiram que não podiam evitar sua exposição à marginalidade, repressão, submissão à violência estatal e de multidões, bem como sua expulsão gradual devido esses fatores; e um movimento Rohingya clandestino começou a atacar estações de polícia de Mianmar.

A reação foi brutal. Incursões das forças de segurança de Mianmar expulsaram a maioria dos Rohingya de suas aldeias, muitos foram massacrados, e suas aldeias foram completamente destruídas. Em março de 2022, o Secretário de Estado Antony Blinken leu uma declaração no Museu do Holocausto em Washington, declarando que o ocorrido aos Rohingya tinha sido genocídio, sinalizando que entre 2016 e 2017, cerca de 850.000 Rohingya foram deportados para Bangladesh e cerca de 9.000 foram assassinados. Isso foi o suficiente para reconhecer o que foi feito aos Rohingya como o oitavo tal evento que os Estados Unidos compreendem como genocídio, além do Holocausto. O caso dos Rohingya nos lembra do que muitos estudiosos do genocídio estabeleceram em termos de pesquisa, e é muito relevante para o caso de Gaza: uma ligação entre limpeza étnica e genocídio.

A conexão entre os dois fenômenos é dupla, e ambos são relevantes para Gaza, onde a grande maioria da população foi expulsa de seus locais de residência, e apenas a recusa do Egito em absorver massas de palestinos em seu território, os impediu de deixar Gaza. Por um lado, a limpeza étnica sinaliza a disposição de eliminar o grupo inimigo a qualquer custo e sem compromisso. Por outro, a limpeza étnica geralmente cria condições (por exemplo, doenças e fome) que permitem ou causam a exterminação parcial ou completa do grupo de vítimas.

No caso de Gaza, as “zonas de refúgio seguro” muitas vezes se transformaram em armadilhas mortais e zonas de extermínio deliberado, e nesses refúgios, Israel deliberadamente priva a população de alimentos. Por esse motivo, há muitos comentaristas que acreditam que a limpeza étnica é o objetivo da luta em Gaza.

O genocídio dos armênios durante a Primeira Guerra Mundial também teve um contexto. Durante os anos de declínio do Império Otomano, os armênios desenvolveram sua própria identidade nacional e exigiram autodeterminação. Seu caráter étnico e religioso diferente, bem como sua localização estratégica na fronteira entre os impérios Otomano e Russo, os tornaram uma população perigosa aos olhos das autoridades otomanas.

Horríveis surtos de violência contra os armênios ocorreram já no final do século XIX, e alguns armênios de fato simpatizavam com os russos e os viam como potenciais libertadores. Pequenos grupos armênio-russos até colaboraram com o exército russo contra os turcos, convocando seus irmãos do outro lado da fronteira para se juntarem a eles, o que levou a uma intensificação do sentimento de ameaça existencial aos olhos do regime Otomano. Esse sentimento de ameaça, que se desenvolveu durante uma profunda crise do império, foi um dos principais fatores no desenvolvimento do Genocídio Armênio, que também iniciou um processo de expulsão.

O primeiro genocídio do século XX também foi executado a partir de um conceito de autodefesa pelos colonos alemães contra os povos Herero e Nama no Sudoeste Africano (atual Namíbia). Como resultado da severa repressão pelos colonos alemães, os locais se rebelaram e em um ataque brutal assassinaram cerca de 123 (talvez mais) homens desarmados. O sentimento de ameaça na pequena comunidade de colonos, que contava apenas com alguns milhares, era real, e a Alemanha temia ter perdido sua dissuasão em relação aos nativos.

A resposta foi de acordo com a ameaça percebida. A Alemanha enviou um exército liderado por um comandante sem restrições, e lá, também, por um senso de autodefesa, a maioria desses membros das aldeias foi assassinada entre 1904 e 1908. Alguns foram mortos diretamente, alguns em condições de fome e sede forçadas pelos alemães (novamente por deportação, desta vez para o deserto de Omaka), e alguns em cruéis campos de internato e trabalho forçado. Processos semelhantes ocorreram durante a expulsão e extermínio de povos originários na América do Norte, especialmente durante o século XIX.

Em todos esses casos, os perpetradores do genocídio sentiram uma ameaça existencial, mais ou menos justificada, e o genocídio teria ocorrido em resposta. A destruição do coletivo das vítimas não foi contrária a um ato de autodefesa, mas sim de um motivo autêntico de autodefesa.

Em 2011, tive um breve artigo publicado no Haaretz sobre o genocídio no Sudoeste Africano, concluindo com as seguintes palavras: “Podemos aprender com o genocídio dos Herero e Nama como a dominação colonial, baseada em um sentimento de superioridade cultural e racial, pode se desdobrar, diante da rebelião local, em crimes horríveis como expulsão em massa, limpeza étnica e genocídio. O caso da rebelião Herero deveria servir como um sinal de alerta horrível para nós aqui em Israel, que já temos como conhecida a Nakba na história.”

Adaptado de Yes, it is genocide. (The Palestine Project)

About the Author

Amos Goldberg is a professor of Holocaust history at the Department of Jewish History and Contemporary Jewry at The Hebrew University of Jerusalem.

About the Translator

Priscilla Marques Campos is a Brazilian master of African social history. She is chief editor of Hydra Journal and enconto orí Review.

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